A edição desta semana, de Veja, traz em destaque a reportagem, 'A festa dos bodes', que diz que 'no momento em que as manifestações de combate à corrupção ganham as ruas, uma polêmica livra a família Sarney de um processo espinhoso. A impunidade no Brasil tem raízes históricas. A promiscuidade entre política e Justiça está entre as principais causas'.
A seguir a reportagem.
Dá-se como regra que em Brasília os assuntos mais candentes não são resolvidos nos gabinetes e nos plenários, mas em restaurantes, quartos de hotel e festas particulares. Na semana passada, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda mais alta corte do país, transformou em pó a mais extensa investigação já feita sobre a família do presidente do Senado, José Sarney. Realizada entre 2007 e 2010, a operação mapeou os negócios do clã maranhense nas abas do poder público, f1agrou remessas milionárias para o exterior, além de dinheiro do contribuinte indo parar em contas de empresas controladas, segundo a polícia, por 'laranjas' do primogênito do senador, o empresário Femando Sarney. Transações quase sempre sustentadas por verbas de órgãos historicamente comandados por apadrinhados do superpoderoso parlamentar, como as estatais do setor elétrico. De tão complexo, o caso se desdobrou em cinco inquéritos. Três deles estavam prestes a se transformar em processos judiciais. Antes que isso acontecesse, porém, veio a decisão do STJ.
Uma das turmas do tribunal considerou que juízes de primeira instância não poderiam ter autorizado a quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico de Femando Sarney e de outros investigados apenas com base em informações do Coaf, o órgão governamental encarregado de monitorar operações financeiras suspeitas. Foi uma transação de 2 milhões de reais, realizada no fim do ano eleitoral de 2006 e mapeada pelo Coaf, que serviu como ponto de partida para a investigação. Incumbidos da operação, Polícia Federal e Ministério Público discordam, obviamente, da decisão. Advogados criminalistas, claro, festejam. Independentememe de qual lado está com a razão, o fato é que o veredicto do STJ dá força à sensação de que os poderosos e aqueles que orbitam em seu redor nunca experimentam a força da lei no Brasil. É mais um elemento a confirmar a fama de paraíso da impunidade. Fama danosa ao país, mas que garante uma vida tranquila a figuras de proa da República às voltas com denúncias graves. Gente como os notórios Paulo Maluf, Luiz Estevão, Jader Barbalho e Renan Calheiros, beneficiados por um caldo cultural que tem como ingredientes a promiscuidade entre agentes públicos e empresários, a falta de apetite das instituições para punir certas castas e a letargia da população diante de malfeitos.
Para entender as razões que protegem políticos e corruptores do acerto de contas com a Justiça, é preciso retroceder ao descobrimento. Diz o professor e doutor em história Ronald Raminelli, da Universidade Federal Fluminense: 'A impunidade é uma prática que veio para ca com os portugueses. Na Europa daquele período, os nobres e poderosos tinham privilégios e não eram submetidos às mesmas leis dos homens comuns. A diferença é que os europeus foram se livrando dessa tradição ao longo do tempo, mas aqui ela perdura até hoje'. Na gênese dessa prática está a necessidade de autopreservação da elite política - comportamento que se cristaliza, por exemplo, nas absolvições de parlamentares criminosos e na dificuldade do Congresso em aprovar leis saneadoras na seara ética. 'Para os poderosos, até hoje fica a interpretação da lei da melhor maneira possível. Há uma rede de proteção em que as leis são sempre interpretadas de acordo com os interesses dos grupos dominantes'. prossegue Raminelli.
A Justiça é uma engrenagem indissociável desse processo. O problema começa na forma como são preenchidas as vagas nos tribunais superiores. Os ministros são escolhidos pelo presidente da República. Antes de assumirem, têm de ser sabatinados e aprovados pelo Senado. 'O processo de escolha é uma verdadeira simbiose entre Legislativo. Executivo e Judiciário e foi levado a um ponto intragável, em que há sempre a perspectiva, por parte dos magistrados. de agradar aos políticos de plantão, que podem ajudá-los a galgar postos mais altos na Justiça' , afirma o procurador Alexandre Camanho, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República. 'Virou uma grande bancada de compadres, onde todos se protegem, se frequentam, e quem quiser ter vaga no STJ ou no STF tem de usufruir de proximidade e prestígio com os políticos.' Com mais de cinquenta anos de vida pública, ex-presidente da República e pela quarta vez no comando do Senado, ao qual cabe realizar as sabatinas, Sarney construiu uma rede de relações e de influência sem precedentes - com ramificações em todos os poderes, principalmente no Judiciário.
Relator do caso que resultou no arquivamento do processo que investigou a família Samey, o ministro Sebastião Reis Júnior foi empossado em junho passado no STJ. Um de seus amigos diletos é o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro. Kakay, como o advogado é conhecido em Brasília, também é amigo de Sarney e defensor do clã maranhense há tempos. Essa relação de proximidade entre os três teve alguma coisa a ver com a decisão da semana passada? Certamente não. Mas relações assim fomentam determinadas lendas. 'O Sebastião é meu amigo há muito tempo, mas não atuei nesse caso, não conheço os detalhes do processo nem sabia que ele era o relator'. diz Kakay. Em fevereiro, o advogado organizou uma feijoada na mansão em que mora, em Brasília, que reuniu ministros. senadores e advogados famosos. Sebastião Reis era um dos convidados.
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