Diz-se que toda Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) acaba em pizza. Mas o cientista político
da Universidade de São Paulo (USP), José Álvaro Moisés, especialista em
Congresso, discorda. Um estudo coordenado por ele e publicado, no ano
passado, no livro O Papel do Congresso Nacional no Presidencialismo de
Coalizão, aponta que, entre 1999 e 2010, 86% das CPIs instaladas no
Senado e na Câmara encaminharam relatórios ao Ministério Público e 56% à
Polícia Federal. Ele explica que, às vezes, há confusão sobre o papel
das comissões: 'A CPI não pode punir ou processar. Ela pode fazer
inquéritos e pedir o indiciamento'.
Para Moisés, no entanto, a CPI
do Cachoeira - instalada nesta semana no Congresso para investigar as
relações de políticos com o contraventor Carlos Augusto Ramos, o
Carlinhos Cachoeira - é 'eminentemente política', uma vez que já existem
investigações conduzidas pela PF e pelo MP.
Ele diz ainda que o
PT 'deu um tiro no pé' ao apostar que a CPI pode ofuscar o julgamento do
mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), previsto para ocorrer ainda
no primeiro semestre deste ano.
Por que existe a percepção de que as CPIs acabam em pizza?
Nem
sempre fica claro quais são os papéis da CPI com base na Constituição e
na legislação. A CPI não pode punir. A CPI não pode processar. Ela pode
fazer inquéritos e indiciar. Pode remeter (o relatório final) para o
Ministério Público, a Polícia Federal, o Tribunal de Contas da União
(TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU). Havendo essa distinção,
acho que fica mais fácil para o leitor entender o âmbito de atuação da
CPI. Quando se olha longitudinalmente - ou seja, num período mais longo
de tempo -, ao contrário da imagem usual de que as CPIs terminam em
pizza, as comissões envolvem recomendações para o Ministério Público,
para a Polícia Federal, e, em mais de 70% dos casos, consequências no
Legislativo. Há outros estudos, no entanto, que mostram que o Brasil,
comparado a outros países, como a Alemanha, tem um sistema político em
que a minoria tem menos possibilidade de criar uma CPI. No caso
brasileiro, são necessárias as assinaturas de um terço dos parlamentares
para criar uma comissão. Na Alemanha, basta um quarto dos
parlamentares. Uma outra questão é que nós só avaliamos as CPIs que
foram implementadas.
O que aconteceu com as outras CPIs que foram propostas, mas não chegaram a ser instaladas?
Elas
sempre dependem da coalizão majoritária. O Executivo pode controlar a
convocação ou não das CPIs através da sua força majoritária no
Congresso.
O sr. mostrou que a maior parte das CPIs resultou em
inquérito na PF ou no MP. Mas a CPI do Cachoeira não é atípica, pois já
existem investigações em andamento nestes órgãos?
Esta é uma
observação importante, o que torna essa CPI um caso particular no
conjunto das demais CPIs. Já existia processo na Procuradoria-Geral da
República e a Polícia Federal inclusive já prendeu envolvidos. Deste
ponto de vista, a perspectiva do que essa CPI pode produzir é de outra
natureza: ela vai ser eminentemente política. A minha convicção pessoal é
de que o PT deu um tiro no pé ao imaginar que, constituindo a CPI, os
fatos que serão divulgados serão exclusivamente sobre o senador
Demóstenes Torres (sem partido-GO) e o governador Marconi Perillo
(PSDB-GO). Existem muitas empresas envolvidas com o Carlinhos Cachoeira
com grandes contratos no PAC. Na verdade, a CPI muito provavelmente vai
mostrar o envolvimento de políticos de um espectro partidário muito mais
amplo do que se imaginava de início. A corrupção tem um efeito
extremamente perverso, de distorção da democracia, porque ela mina a
legitimidade e retira recursos de políticas públicas. Nós estamos
vivendo uma fase nova da democracia brasileira: tem opinião pública, tem
manifestações contra a corrupção, e a mídia joga um papel extremamente
importante de ecoar denúncias e, ao mesmo tempo, produzir novas
informações.
O sr. discorda, portanto, da tese do PT de que a CPI poderia reduzir a relevância do julgamento do mensalão?
À
medida que a CPI vai mostrar que a corrupção é mais ampla e que atinge
diferentes setores, de instituições do governo a partidos que hoje estão
na oposição, ficará claro que a corrupção é um fenômeno extremamente
importante e que os mecanismos de punição precisam ser aprimorados.
Neste contexto, não faz o menor sentido jogar água para amenizar o caso
do mensalão. Vai chamar mais atenção e vai ter um efeito de pressão
sobre o Supremo para apressar o julgamento.
Desde o início do
mandato, a presidente Dilma Rousseff tem tido atritos com a base de
apoio do governo. A falta de unidade na bancada governista pode ser uma
ameaça ao Planalto?
Como a base da coalizão é extremamente
diversificada e heterogênea, pode haver setores que foram defenestrados
dos ministérios durante a faxina da presidente Dilma ou que estão se
sentindo pouco atendidos na distribuição de cargos e que podem usar a
CPI para produzir informações para pressionar o governo. Mas isso é
parte do jogo, é parte da democracia.
A CPI é, essencialmente, uma ferramenta da oposição?
Não
exatamente. A CPI é um instrumento de controle e fiscalização, a fim de
evitar abuso de poder. Portanto, ela seria mais utilizada pela
oposição.
O foco em parlamentares da oposição tornaria, novamente, esta CPI atípica?
A
oposição, na situação específica desta CPI, tem que se articular em
duas direções: primeiramente atuando com a mídia - ecoando as
informações publicadas e passando informações para ela. Em segundo
lugar, a oposição deveria sair do parlamento e ir para a sociedade,
estabelecendo vínculos principalmente com os movimentos de combate à
corrupção.
Mas a oposição não ficou sem discurso graças ao envolvimento de parlamentares do DEM e do PSDB com Cachoeira?
Quando
for o caso, a oposição tem que admitir os erros e mostrar que ela está
tomando medidas para corrigi-los. Se for o caso - e nós ainda não
sabemos se é, precisamos de provas -, a oposição tem que cortar na
carne.