Em meados da década passada, nuvens de tempestade acumulavam-se sobre os neoconservadores norte-americanos: a “mudança de regime” que tentaram n Iraque era um desastre; a “Missão Cumprida” do presidente George W. Bush era piada que se ouvia pelas ruas; a imprensa começava a publicar opiniões sobre o “lado obscuro” da atuação deles na “guerra ao terror”; e o público estava farto de sangue e dinheiro desperdiçados.
Seria de esperar que os neoconservadores tivessem sido banidos para os confins mais distantes da política norte-americana, para tão longe que não se ouviria outra vez falar deles. Pois nada disso. Em vez de sumir, os neoconservadores provaram que são capazes de permanecer no poder e, agora, reemergem como arquitetos da estratégia dos EUA para a Ucrânia.
Os neoconservadores trabalharam nas coxias e instigaram o golpe de 22 de fevereiro/2014 que derrubou presidente democraticamente eleito, com a ajuda de milícias neofascistas; os neoconservadores arrastaram a Washington oficial para um frenesi de apoio bipartidário ao governo do golpe; e agora trabalham a favor de uma nova Guerra Fria, caso o povo da Crimeia decida separar-se da Ucrânia e unir-se à Rússia.
Há algumas semanas, a maioria dos norte-americanos sequer havia ouvido falar de Ucrânia e muito menos sabia que a Crimeia fosse parte da Ucrânia. Mas, de repente, o Congresso dos EUA, normalmente sempre obcecado com o déficit, já está mandando bilhões de dólares para ajudar o golpe em Kiev, como se o futuro da Ucrânia fosse a questão mais importante que o povo norte-americano tivesse de enfrentar.
Até jornalistas e comentaristas que de início resistiram ao estouro da manada comandado pelos neoconservadores já se “alinharam”, aparentemente por medo de serem rotulados como “apologistas” do presidente Vladimir Putin da Rússia. De fato, já é quase impossível encontrar político ou “especialista” midiático que não se tenha alinhado ao lado dos neoconservadores em sua posição de beligerância na questão da Ucrânia.
Pois os céus parecem ainda mais abertos para eles. Os neoconservadores podem esperar, que aparecerão ainda mais poderosos, à medida que o presidente Barack Obama vá se tornando “pato manco” e, com ele, também suas iniciativas diplomáticas para a Síria e para o Irã (em parte porque a crise da Síria distanciou muito os presidentes Obama e Putin), e a Democrata (mas com clara tendência neoconservadora) Hillary Clinton já conseguiu espantar, de medo, qualquer oposição de peso à sua indicação como candidata à presidência para 2016, e até seus rivais Republicanos já se beneficiam das bênçãos dos neoconservadores.
|
Hillary Clinton, candidata à presidência dos EUA em 2016 pelo Partido Democrata |
De fato, essa virada surpreendente dificilmente seria prevista, depois que os neoconservadores arrastaram os EUA para a catastrófica guerra no Iraque e aquele horrível morticínio, que incluiu a morte e a incapacitação de dezenas de milhares de soldados norte-americanos e o desperdício de talvez $1 trilhão de dólares dos contribuintes norte-americanos.
Na eleição de 2006 para o Congresso, os candidatos do “Velho Grande Partido” [orig. Grand Old Party, GOP (os Republicanos)] levaram uma surra, porque Bush e os Republicanos estavam associados, muitos deles, com os neoconservadores. Na eleição de 2008, a senadora Hillary Clinton, neoconservadorista, que havia votado a favor da Guerra do Iraque, perdeu a indicação como candidata Democrata para o senador Barack Obama, que se opusera à invasão do Iraque. Na sequência, na eleição geral, Obama derrotou o porta-estandarte dos neoconservadores, John McCain, e chegou à Casa Branca.
Naquele momento, parecia que os neoconservadores enfrentavam sérios problemas. De fato, vários deles tiveram de limpar as gavetas de deixar o governo, para procurar emprego em think tanks, institutos ou fundações e em outras organizações não governamentais (ONGs) amigas de neoconservadores.
Ainda mais significativo: a grande estratégia neoconservadora parecia ter caído em descrédito. Muitos norte-americanos viam o sonho dos neoconservadores, de mais “mudança de regime” no Oriente Médio – em países que se opunham a Israel, principalmente Síria e Irã – como nada além de um pesadelo sem fim de morte e destruição.
Depois de assumir o governo, o presidente Obama falou a favor do fim das guerras de Bush e de os norte-americanos cuidarem melhor de “construir a nação em casa”. O grande público pareceu concordar. Até alguns Republicanos de direita estavam começando a repensar a defesa que os neoconservadores faziam de um Império Norte-Americano, e a reconhecer o impacto devastador daquele projeto sobre a República Norte-americana.
O revide
Mas os neoconservadores de modo algum estavam derrotados. Eles se haviam posicionado muito espertamente.
Ainda controlavam as operações pagas pelo governo norte-americano, como o Fundo Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)]; ainda mantinham posições proeminentes nos think-tanks, institutos e fundações, do Instituto das Empresas Norte-americanas [orig. American Enterprise Institute] ao Conselho de Relações Exteriores [orig. Council on Foreign Relations] e à Brookings Institution; tinham aliados poderosos no Congresso, como os senadores McCain, Lindsey Graham e Joe Lieberman; e dominavam todos os programas de entrevistas e “análises” da televisão comercial e as colunas assinadas em jornais da imprensa-empresa, especialmente no Washington Post, o jornal da capital.
|
John McCain (R-Arizona) e Lindsey Graham (D-Carolina do Sul) |
Desde o final dos anos 1970s e início dos 1980s, quando pela primeira vez emergiram como força notável em Washington, os neoconservadores tornaram-se “fonte interna”. Eram, simultaneamente, admirados e temidos por sua ferocidade discursiva, mas – mais importante para sua sobrevivência de longo prazo – haviam assegurado livre acesso ao dinheiro do governo, inclusive ao dinheiro grosso do Fundo Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)], cujo orçamento passou a ser superior a $100 milhões durante os anos Bush.
O Fundo Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)], fundado em 1983, é mais conhecido por investir na “construção da democracia” em outros países (quer dizer: em campanhas de desestabilização estilo CIA, conforme o ponto de vista do leitor), mas grande parte do dinheiro do Fundo Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)] vai, na realidade, para ONGs em Washington, o que implica que viraram linha de sobrevivência para operadores neoconservadores que se viram ameaçados de desemprego com a chegada de Obama.
Enquanto defensores ideológicos de outros movimentos fracassados tiveram de voltar para casa ou mudar de profissão, os neoconservadores encontraram meios financeiros de sobrevivência (do Fundo Nacional para a Democracia [orig.National Endowment for Democracy (NED)] e de outras muitas fontes), e o barco de propaganda ideológica deles pôde atravessar os dias de mau tempo.
|
Barack Obama |
E, apesar da oposição de Obama à obsessão dos neoconservadores com guerras sem fim, ele não os excluiu de seu governo. Neoconservadores que se haviam implantado fundo no governo dos EUA como “funcionários civis” ou “oficiais de carreira do serviço diplomático” permaneceram como “força de retaguarda”, procurando novos aliados e aproveitando o tempo.
Obama criou esse problema de “força de retaguarda” com a fatídica decisão, tomada em novembro de 2008, de encampar a tendenciosa ideia de “uma equipe de rivais”, que incluiu manter o agente Republicano (e aliado dos neoconservadores), Robert Gates, no Departamento de Defesa, e pôr a Democrata-mas-com-tendências-a-falcão-Republicano Hillary Clinton, também aliada dos neoconservadores, no Departamento de Estado. Os neoconservadores, provavelmente, quase nem acreditaram na própria sorte!
De volta às boas graças do poder
Longe de terem sido marginalizados e afastados – como com certeza mereciam ser, depois do fiasco da Guerra do Iraque – neoconservadores chaves continuaram a ser alvo da mais alta e distinta consideração. Como se lê em suas memórias Duty, Gates deixou que o teórico militarista neoconservador Frederick Kagan o persuadisse a apoiar a “avançada” de mais 30 mil soldados norte-americanos, enviados para a Guerra do Afeganistão, em 2009.
|
Robert Gates |
Gates escreveu que:
(...) uma importante estação do meu “pilgrim’s progress” [1] do ceticismo até o apoio a enviar mais soldados para o Afeganistão, foi um ensaio do historiador Fred Kagan, que me enviou um rascunho antes de o ensaio ser publicado.
O secretário da Defesa, na sequência, colaborou com remanescentes do alto comando de Bush, inclusive com o general favorito dos neoconservadores, David Petraeus, e com a Secretária de Estado Clinton, para empurrar Obama para cordas políticas, nas quais ele sentiu que não teria escolha senão acolher a recomendação dos dois para a “avançada”.
Obama, como se sabe, arrependeu-se da decisão quase imediatamente depois de tomá-la. A “avançada” afegã, como, antes, a “avançada” na Guerra do Iraque, custou a vida de mais mil e tantos soldados norte-americanos, mas, feitas as contas, nada mudou na direção estratégica da guerra.
|
Robert Kagan |
No Departamento de Estado de Clinton, outros neoconservadores foram postos em cargos influentes. O irmão de Frederick Kagan, Robert, neoconservador do governo Reagan e cofundador do projeto neoconservador Projeto para um Novo Século Norte-Americano [orig.Project for the New American Century], foi nomeado conselheiro do Foreign Affairs Policy Board. E a secretária Clinton também nomeou a esposa de Robert Kagan, Victoria Nuland, ao cargo de porta-voz do Departamento de Estado.
Embora a tal “equipe de rivais” de Obama tenha na sequência deixado a cena (Gates, em meados de 2011; Petraeus num escândalo sexual no final de 2012; e Clinton no início de 2013), todos esses três garantiram aos conservadores tempo crucialmente importante para respirar, reagrupar-se e se reorganizar. Assim, quando o senador John Kerry substituiu Clinton como Secretário de Estado (com a considerável ajuda de seu amigo neoconservador John McCain), os neoconservadores do Departamento de Estado estavam outra vez posicionados para retorno com muito poder.
Nuland foi promovida a secretária de Estado assistente para Assuntos Europeus, e assumiu como missão principal derrubar o governo da Ucrânia, que se tornara alvo preferencial dos neoconservadore porque mantém laços próximos com a Rússia, cujo presidente Putin estava dificultando as estratégias de “mudança de regime” dos neoconservadores na área que eles mais valorizam, o Oriente Médio. Pior ainda: Putin estava ajudando Obama a evitar guerras na Síria e no Irã.
Assim, como o presidente do Fundo Nacional para a Democracia [orig. National Endowment for Democracy (NED)] Carl Gershman escreveu noWashington Post em setembro de 2013, a Ucrânia tornou-se “o maior prêmio”; mas acrescentou que alvo ainda mais sumarento, além da Ucrânia, era Putin, o qual, Gershman acrescentou, “pode descobrir-se no lado perdedor, não na região próxima, mas dentro da própria Rússia”.
Em outras palavras, o objetivo final no jogo da Ucrânia não é só “mudança de regime” em Kiev, mas “mudança de regime” em Moscou. Se conseguir livrar-se de Putin, homem de pensamento independente e vontade firme, os neoconservadores, ao que parece, deliram com conseguir pôr um de seus delegados (talvez uma versão russa de Ahmed Chalabi) no Kremlin.
Isso feito, então os neoconservadores poderão avançar, sem empecilhos, na direção de seu plano original de “mudança de regime” no Oriente Médio, com guerras contra a Síria e o Irã.
Fato tão perigoso – e ensandecido – como essa visão dos neoconservadores (que levanta o espectro de possível confronto nuclear entre EUA e Rússia), os neoconservadores parecem estar claramente de volta ao controle da política exterior dos EUA. E em posição na qual quase não podem perder, se se consideram os seus exclusivos interesses, tome a crise da Ucrânia o rumo que tomar.
|
Vladimir Putin |
Se Putin recuar ante os “ultimatos” dos EUA sobre Ucrânia e Crimeia, os neoconservadores poderão bater no peito e declarar que os mesmos ultimatos devem ser feitos aos outros alvos dos neoconservadores, isto é., Síria e Irã. E se esses países não se submeterem, não haverá escolha, além de deixar que os EUA ponham-se a bombardeá-los, com mais “choque e pavor”.
Por outro lado, se Putin não recuar e a Crimeia decidir separar-se da Ucrânia e voltar a ser parte da Rússia (país com o qual a Crimeia mantém laços antigos, desde os 1700s de Catarina, a Grande), nesse caso os neoconservadores surfarão a onda do ultraje da Washington oficial, e exigirá que Obama extinga qualquer via para qualquer futura cooperação com Putin – o que deixará aberta a via para os EUA escalarem no confronto com Síria e Irã.
Ainda que Obama consiga se manter à tona, e contorne as exigências dos neoconservadores por mais dois anos, sua estratégia conciliatória, de colaboração com Putin para resolver as questões com Síria e Irã estará já morta, ao final de seu mandato. Os neoconservadores bem podem esperar que suas próprias velas voltem a inflar-se, quando, seja uma Hillary Clinton presidente, seja algum outro Republicano (que precisará do apoio dos neoconservadores) chegue à Casa Branca em 2017.
Mas os neoconservadores já podem começar a comemorar. Conseguiram atravessar a tempestade.
Nota dos tradutores
[1] Referência a The Pilgrim’s Progress from This World to That Which Is to Come; Delivered under the Similitude of a Dream [O Avanço do Peregrino, desse mundo até o próximo; apresentado sob a forma de um sonho] é uma alegoria cristã do caminho de vida do cristão, escrita por John Bunyan e publicada em 1678. A teologia Protestante explícita de The Pilgrim's Progress tornou-o muito popular. Em 2004 e 2008, um espetáculo musical (letras e músicas de Kenneth Wright), foi apresentado no Life House Theater, em Redlands, Califórnia.
___________________
[*] Robert Parry é um jornalista investigativo norte-americano.Recebeu Prêmio George Polk de Reportagem Nacional em 1984 por seu trabalho na Associated Press sobre o caso Irã-Contras quando descobriu envolvimento de Oliver North. Trabalhou como correspondente em Washington para a Newsweek. Em 1995 fundou oConsorctiumNews, um espaço de noticiário liberal online dedicado ao jornalismo investigativo. De 2000 a 2004, trabalhou para agência Bloomberg. Parry escreveu vários livros, incluindo Lost History: Contras, Cocaine, the Press & “Project Truth” (1999) e Secrecy & Privilege: Rise of the Bush Dynasty from Watergate to Iraq (2004).