O relato de Fernando Brito sobre “o tiro que acertamos no cu de um mosquito” – no dizer de Leonel Brizola, a improvável vitória judicial que obrigou Cid Moreira a ler o seu direito de resposta contra a TV Globo, há exatos 20 anos – abre um baú de recordações e revelações que não se pode mais deixar fechado.
Aquela foi sem dúvida uma das mais espetaculares façanhas políticas e jornalísticas da qual tive o privilégio de participar – modestamente, é verdade – ao lado de um dos mais competentes e íntegros profissionais de imprensa que conheço. Durante uma boa dúzia de anos vivi a aventura de colaborar com Fernando Brito, como seu fiel escudeiro, na assessoria de imprensa do Brizola, dentro e fora de seus dois governos no Estado do Rio.
Partilhamos lutas e sonhos numa posição da trincheira difícil de se estar, lutando contra inimigos poderosos, tentando romper, mesmo que em pequenas brechas, a muralha de cinismo, hipocrisia e mau jornalismo erguida pela grande imprensa ao longo desses últimos 50 anos para tentar impedir o reencontro do povo brasileiro com a sua história. Na esteira dos anos de chumbo, a mídia e as elites criaram os anos de silêncio, cassando a palavra de líderes como Brizola (lembro de um casuísmo do TSE nas eleições estaduais de 1986 que chegou a proibir a presença dos governadores – leia-se Brizola – na propaganda eleitoral gratuita, quando Darcy Ribeiro disputava o governo fluminense contra Moreira Franco).
Aí entraram os tijolaços e as nossas quixotescas tentativas de buscar pelas vias judiciais os espaços que nos eram negados na mídia. Estas, na maioria das vezes, esbarravam no facciosismo do judiciário, depois de nossas respostas serem solenemente ignoradas dentro das redações. Eu mesmo cumpri algumas vezes o papel – apenas formal – de entregar pessoalmente na redação de O Globo textos que dali iam diretamente para a cesta do lixo, antes que os enviássemos aos tribunais.
Cabia ao Brito compor esses textos, ora ao lado do Brizola, mas muitas vezes a duas mãos apenas. E não só os tijolaços e os pedidos de direito de resposta, mas muitas peças de campanha e manifestações políticas que levavam a assinatura do Chefe. O processo era exatamente como descrito por ele em seu artigo. Uma sintonia perfeita com o estilo discursivo e o pensamento político de Brizola o levava a incorporá-lo. Sem qualquer insinuação metafísica, parecia mesmo ser tomado por ele.
Brito não apenas redigia, com o nosso auxílio, pois nesses momentos preferia discursar, cabendo-nos a tarefa de transcrever, com um ou outro debate sobre algum ponto do texto. Ele o sentia. Gerava-o sofregamente. Experimentava a dramaticidade daquela argumentação empírica, como o próprio Brizola a definia, às vezes até às lágrimas.
Recordo que, às vésperas da eleição presidencial de 1989, naquela que nos parecia, e era, a última grande encruzilhada histórica deste país, ele vomitava um artigo para ser publicado em O Dia na própria data do pleito. Lembro da última frase, que fechava o artigo mais ou mos assim: “Hoje, quando saíres de casa, olha para os olhos de teus filhos, de teus netos, me dê a tua mão e vamos juntos em busca do nosso destino…”. Na sala do Edifício Orly, onde ficava o nosso bunker, nossos olhos marejavam enquanto Brito corria, soluçando, para o banheiro.
Não, ele não era um ghost writer qualquer. Era, na verdade, a única pessoa capaz daquilo. E, a meu ver, por três razões conjugadas: primeira, por seu grande talento de redator; segunda, e mais importante, pela incorporação do pensamento, da identidade e da fidelidade política do próprio Brizola; e, terceira, sem a qual as duas anteriores de nada serviriam, por merecer a confiança absoluta do Chefe. Coisa para bem poucos dos que serviram a Brizola ao longo de sua trajetória.
Vivemos e choramos até hoje os nossos fracassos. Naqueles idos de 89 sentíamos como se fôssemos a última linha de defesa da histórica bandeira política do povo brasileiro – o Trabalhismo. Vi o grande Doutel de Andrade prantear, pouco antes de morrer, repetindo insistentemente: “A nossa geração fracassou!” Vi Darcy, também antes de partir, confessar os seus fracassos: “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.
Muitos de nós, como eu, ficamos em determinado momento desesperançados e ensimesmados. Precisávamos encontrar nossos caminhos, e para jornalistas como eu, Apio Gomes, Osvaldo Maneschy e outros companheiros da mesma trincheira de Fernando Brito, dificilmente eles poderiam passar novamente pelas redações dos grandes jornais. Mas ao olhar para o que ajudamos a fazer há 20 anos, fica a sensação de que aquela fenda na muralha de cinismo continua aberta, minando essa estrutura iníqua até que ela um dia caia de podre.
Os vários arquivos que reproduzem no YouTube o direito de resposta conquistado por Brizola contra a TV Globo em 1994 somam centenas de milhares de exibições e continuam sendo visualizados a cada dia por mais pessoas. E quantas das muitas mentiras da Globo levantadas contra Brizola naquela época ecoam ainda hoje? Foram sepultadas para sempre no limbo da história.
Ao rever a cara de bunda do Cid Moreira passo a pensar menos nos nossos fracassos e mais em uma das grandes imagens do Brizola, o único talvez que nunca admitiu o fracasso – a da lenha guarda-fogo. Ele dizia que nós, trabalhistas, somos como aquela tora mais grossa da fogueira do gaúcho no pampa, que guarda uma centelha de chama no seu interior mesmo quando não se vê. Durante a noite, a fogueira parece ter-se apagado. Mas, pela manhã, o gaúcho se levanta e assopra as cinzas, fazendo rapidamente levantar novamente o fogo necessário para a sua jornada.
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