Os erros que a Argentina cometeu foram para segundo plano. O pior agora é o erro da Suprema Corte americana em relação aos argentinos. Uma sombra a mais de incerteza cobrirá todos os processos de reestruturação de dívida no mundo. E eles acontecem em qualquer país, como se viu recentemente na Europa. A Justiça americana está incentivando o conflito oportunista.
No calote de 2005, a Argentina, de forma agressiva, impôs aos credores uma perda de 70% do valor dos papéis. E o ex-presidente Néstor Kirchner fez de tudo uma bravata populista. Esse foi o erro deles. Na época, 93% dos credores aceitaram o acordo, porque era aquilo ou nada, mas 7% não aceitaram. Desses 7%, apenas 10% venderam, em 2008, os papéis para fundos especialistas em brigas na Justiça, ou seja, 0,7% do total da dívida.
Os fundos que a presidente Cristina Kirchner chama de abutres vêm litigando na Justiça americana e agora ganharam o aval da Suprema Corte. Depois da negociação de 2010, a Argentina começou a pagar aos credores. Depositaria em 30 de junho uma parcela de US$ 900 milhões, mas a ordem judicial é para que esse dinheiro seja arrestado para pagar aqueles 10% de credores dos 7% que não fizeram acordo. E eles têm a receber US$ 1,3 bilhão.
A Argentina está encurralada, porque, se não pagar, estará em nova moratória; se pagar, o dinheiro não irá para os credores que de boa fé aceitaram o acordo, mas para os mais espertos dos especuladores. Se pagar os US$ 2,2 bilhões, tendo apenas US$ 26 bi de reservas, abre a possibilidade de os demais, que não entraram no acordo, exigirem o mesmo. Os que entraram na negociação também podem pedir o mesmo tratamento e isso desmontaria todo o edifício.
O governo de Buenos Aires oscilou nos últimos dias, mas ontem admitiu que foi à Justiça americana procurando o juiz que deu a primeira sentença e pediu condições de pagar. Pela primeira vez, aceita pagar aos fundos abutres. Internamente, estava dizendo que não pagaria.
A ideia de tentar fugir da jurisdição americana, que a presidente Kirchner imaginou inicialmente, era impraticável. Ela não conseguiria até o dia 30 levar 100% dos credores que fecharam o acordo para uma nova troca de títulos dentro das leis argentinas.
O que preocupa todo mundo, do governo brasileiro ao Fundo Monetário Internacional, é o fato de que essa decisão da Suprema Corte abre um precedente com reflexo em qualquer processo de renegociação de dívida que ocorra daqui em diante. É sempre traumático e complexo. Agora piorou porque os credores foram incentivados a ficarem de fora dos processos para brigar na Justiça, com a esperança de um dia receberem o valor integral de papéis que perderam valor nas crises soberanas.
O Brasil viveu uma crise angustiante na década de 1980 e 1990 com a dívida contraída pelos militares. O embaixador Jório Dauster pediu, em comentário postado no blog, que eu registrasse aqui que ele é que tirou o país da moratória, ao negociar os IDUs (juros devidos e não pagos) de US$ 8 bilhões. Foi o ex-ministro Pedro Malan, no entanto, quem fez o grande trabalho da negociação da troca da dívida velha caloteada por novos papéis e encerrou a moratória brasileira.
O nosso processo foi bem sucedido, porque não partiu de bravata, mas sim de uma negociação com oferta de opções aos credores. A Argentina escolheu o confronto e se deu mal. O maior temor agora é que o resultado final aumente a incerteza em relação a qualquer problema de país devedor daqui em diante. Até a França, que sedia o Clube de Paris, onde dívidas soberanas são renegociadas, entrou na Corte ao lado da Argentina.
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