A
ciência política ensina que Estado e sociedade formam um todo indivisível. A
prática mostra que, ao menos entre nós, Estado e sociedade compõem uma
dualidade em escancarado desnível. Nosso corpo social anda a passos mais
avançados que o esqueleto do Estado.
Basta conferir os pulmões cheios de oxigênio de grupos
que representam o espectro profissional ocupando ruas, acampando diante das
Casas do poder, em Brasília e nos Estados, entrando em choque com aparatos
policiais, expandindo uma locução focada na qualidade dos serviços públicos e
na melhoria de condições de vida das comunidades. A visão é clara: a sociedade
empunha aríetes para furar os bloqueios das fortalezas do Estado. Outra imagem
que transparece é a de forças centrípetas saindo das margens para fustigar as
forças centrífugas, simbolizadas pelos Poderes nas três instâncias federativas
- União, Estados e municípios. Não se pense que a intenção é destruir os
organismos que tributam, legislam e julgam, mas exigir deles mais eficiência no
cumprimento de suas tarefas. Desse cenário conflituoso emerge a idéia de que a
sociedade nunca esteve tão ativa, enquanto o Estado nunca foi tão reativo,
lerdo, sem rumo.
Seja qual for o espaço da administração, as mostras de
ineficiência e incúria se multiplicam. Após muito planejamento, o governo abriu
leilão para a concessão da rodovia federal BR-262, um dos principais corredores
de transporte de carga do País, num trecho de 375 km que passa por 22
municípios. A expectativa era enorme. O leilão, um fiasco para o Executivo.
Ninguém se interessou, o que denota curto-circuito num dos programas-chave do
governo.
"Não há Judiciário mais confuso que o
nosso", vem de dizer o presidente da Corte Suprema, ministro Joaquim
Barbosa. Péssimo conceito. A pendenga entre o Legislativo e o Executivo é um
continuum de tensões, não apenas em decorrência de medidas provisórias que
trancam pautas do Congresso, mas por causa da índole do nosso presidencialismo,
sempre atento ao poder imperial, com o qual mantém sob rédea curta o conjunto
parlamentar. Nas instâncias estaduais e municipais, curvas e buracos
desorganizam as avenidas das administrações, adensando a insatisfação social. A
conclusão é inevitável: o Estado brasileiro atinge o pico da montanha de uma
crise que se arrasta há décadas. Ainda está em pé por causa de estacas e
ferragens que, aqui e ali, se colocam, algumas de maneira improvisada, para
sustentar os barrancos.
O que fazer para que o Estado acompanhe o andar
ligeiro da sociedade? Resposta na ponta da língua: reformá-lo. Ora, se esse
verbo é o mais acessado do dicionário de nossas utopias, é também o mais
distante de nossa realidade. A razão é óbvia: reformar, como lembra Samuel
Huntington, é mudar valores, padrões tradicionais, expandir a educação,
racionalizar estruturas de autoridade, criar organizações funcionalmente
específicas, substituir critérios subjetivos por elementos de desempenho e
promover distribuição mais equitativa dos recursos materiais e simbólicos. Ou
ainda, como dizia Maquiavel, "nada mais difícil de executar, mais duvidoso
de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de
coisas". No nosso caso, as barreiras culturais, formadas lá atrás com a
argamassa do patrimonialismo e seus filhotes, o clientelismo e o nepotismo,
formam diques quase insuperáveis no oceano da reforma do Estado.
Reformar o Estado não é passar massa de reboco nos
andares dos edifícios governativos, como se tem feito, aqui e ali, em momentos
de tensão. Abriga tarefas hercúleas nos três Poderes que integram a estrutura
de governo e envolvem questões estratégicas, definições que mudam até o modus
operandi do regime, rotinas, práticas e costumes dos entes administrativos. Na
esfera estratégica, um dos primeiros movimentos é na direção das funções do
Estado, com a distinção entre suas atividades exclusivas (legislar, regular,
julgar, policiar, fiscalizar, definir políticas, fomentar), os braços sociais e
a produção de bens e serviços, visando a buscar novos modelos de
desenvolvimento. A título de ilustração, essa questão não está clara na atual
administração, pois o conceito de privatização é demonizado, apesar de o
programa de concessões apontar para uma tomada de posição privatista repudiada
pelo petismo. Não se trata, como ideólogos radicais enxergam, de defender o
Estado mínimo ou combater o Estado máximo, mas fortalecê-lo para que consiga
aperfeiçoar sua ação reguladora, a par de qualificar serviços e políticas
sociais. A modelagem de cunho social-liberal é, seguramente, a mais adequada
para gerar eficácia nas ações estatais e estimular a competição no campo
privado. (O peso do conceito liberal, eis o busílis.)
Entre as engrenagens capazes de conferir maior
velocidade ao motor do Estado, algumas são bem conhecidas. A meritocracia, por
exemplo. Por que não implantar, de cima para baixo, a política do mérito,
exigindo quadros profissionais qualificados, adequados às funções, treinados
nas habilidades gerenciais? O atendimento político, por sua vez, deveria
restringir-se às áreas específicas e, caso se levante o argumento da
preservação do presidencialismo de coalizão, os partidos deveriam indicar
perfis técnicos condizentes com os cargos. A gestão passaria por um banho de
capacitação em todas as instâncias. Ao servidor público, mais valorizado, seria
propiciada motivação profissional, a partir de remuneração condizente com o
mercado de trabalho. O excesso burocrático seria contido, evitando-se a
escadaria dos papéis e o retardamento das ações e decisões. Na frente da
Previdência, urge consolidar uma política voltada para tampar os buracos do
sistema, de forma a equilibrar as contas do Estado.
O que falta para preencher cada lacuna? Vontade
política, senso de oportunidade, autoridade e liderança. Luzes que deveriam
iluminar a direção do País.
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