Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.
Nas últimas semanas, assistimos pela imprensa uma controvérsia que opõe taxistas e a empresa de tecnologia Uber. Pareceres circularam, manifestações foram realizadas e alguns atos violentos (que, obviamente, não podem ser de forma alguma justificados) foram verificados. De tudo o que pudemos apurar, parece-nos que defender a viabilidade e a licitude dos serviços da Uber virou sinônimo de progressismo, espécie de iluminismo do transporte individual de passageiros, enquanto que a posição em favor dos taxistas seria o obscurantismo, um resquício de uma atrasada tradição cartorial.
De nossa parte, nada contra o livre mercado e as consequências que dele decorrem. Todavia, a defesa — quase apaixonada — que dele vem se fazendo, leva a uma perda de objetividade do discurso e este último, ao invés de se revestir dos contornos de uma peça técnica, acaba por se perder em pura retórica. Um dos pontos intrigantes dessa questão diz respeito à lei federal que traça os contornos da política nacional de transportes. É dela que retiramos as coordenadas para responder se os serviços prestados pelo Uber estariam adequados e seriam lícitos perante o direito brasileiro. Nesse caso, há que se observar, a Lei 12.587/2012 não se apresenta como um fóssil jurídico. Ela é recente, de 2012. No que tange especificamente ao quiproquó envolvendo taxistas versus Uber, há um dispositivo (de uma clareza impar), o artigo 12, que afirma ser dever do poder público municipal organizar, disciplinar e fiscalizar os serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros, com base nos requisitos mínimos de segurança, conforto, higiene, qualidade dos serviços e, inclusive, fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobradas.
O quadro normativo aponta, portanto, para a competência legislativa municipal, assim como para o exercício do poder de polícia para adequar a prestação do referido serviço aos parâmetros oferecidos pela referida legislação. Há quem diga, no entanto, que a competência legislativa para regulamentação da matéria “transporte” seria privativa do Congresso Nacional, ficando de fora da categoria “matéria de interesse local” que enquadra genericamente as hipóteses de competência legislativa municipal.
A lei, como demonstrado acima, assume a interpretação de que a matéria seria, sim, uma questão de interesse local. E, neste caso, cabe a pergunta: poderia ser diferente? Seria mesmo possível imaginarmos que a regulamentação do serviço de transporte individual de passageiros não estaria imbuído de interesse local? É possível defender-se que, a pretexto de modernizamos nosso modelo de transporte individual de passageiros, ao invés de descentralizar a regulamentação e a gestão devemos optar por um modelo centralizado, baseado em uma competência privativa da união? Se a resposta for positiva, como isso poderia ser feito? De que modo essa regulamentação poderia abarcar interesses e peculiaridades de cidades brasileiras tão heterogêneas entre si como é o caso de Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro (para ficar apenas com estes exemplos)?
Portanto, parece-nos, não há que se falar em inconstitucionalidade formal do artigo 12 da Lei 12.587/2012 por descumprimento das regras de competência legislativa traçadas no artigo 22 da Constituição Federal. Tampouco as respectivas legislações municipais o seriam, na medida em que regulamentam assunto de interesse local e estão amparadas pelo regramento geral da política nacional de transporte posto pela lei de 2012.
Assim, se não há inconstitucionalidade, temos que reconhecer que há aqui uma determinação legislativa que obriga a todos os que, de alguma forma, a ela estão vinculados. Nessa medida, as posições que saúdam o “iluminismo” do aplicativo Uber e homenageiam com isso a livre concorrência e a livre iniciativa, provavelmente terão dificuldades em explicar como uma empresa privada pode assumir uma função que, por lei, é do poder público (organizar os prestadores de serviço e fiscalizar as suas atividades).
Ora, se o Uber pode, cobrando comissão, autorizar e organizar diretamente uma atividade de transporte individual, por qual motivo um particular autônomo não poderia também colocar seu próprio carro à disposição dos clientes, independentemente de qualquer controle por parte do poder público municipal? Qual a diferença entre um particular não vinculado ao Uber transportar um passageiro e um motorista associado ao Uber realizar o mesmo serviço?
Encaminhando-se a resposta no sentido de que a empresa oferece mecanismos de controle da atividade do motorista e do veículo utilizado na prestação do serviço, então teremos que responder a outra pergunta: mas a lei não atribui uma tal competência para a municipalidade? Se o aplicativo Uber controla seus associados, quem, por sua vez, controla a empresa Uber?
A lei confere, claramente, ao município uma tal competência. Mas parece apontar para um controle sobre a permissão de exploração de serviços de táxi (artigo 12-A). No caso da empresa Uber, como o município poderia efetuar essa fiscalização? O Uber seria tratado como se fosse uma cooperativa de táxi do “B”? E mais: o município teria condições de efetuar uma tal fiscalização? Há uma série de problemas que poderiam levar, neste momento, a uma dificuldade de regulamentação do serviço prestado pela empresa.
Há ainda um exagero quando se defende uma abstenção do Estado no controle da atividade de transporte individual de passageiros. Oportunisticamente, é possível pegar carona na onda de descrédito que desde 2013 acomete, em maior medida, o poder público. Há uma revolta generalizada por conta da má qualidade dos serviços públicos. Mas, ainda assim, nada autoriza uma transferência das competências para o particular. Um pouco de estado sempre é importante. Principalmente quando existe interesse social relevante envolvido. A questão precisa, então, ficar corretamente direcionada: é preciso cobrar mais eficiência do Estado, mas isso não significa demonizá-lo.
Em 2008, mutatis mutandis, a omissão regulatória levou à crise do subprime. Neste caso, chegou-se ao ponto que se chegou, porque havia quem defendesse que o Estado ficasse afastado da regulação financeira para que o capital pudesse, em todo o seu esplendor, frutificar-se e multiplicar-se. Estado demais, em uma democracia de mercado, atrapalha. Mas a ausência dele é tão ruim quanto.
Portanto, neste caso Uber versus taxistas, precisamos, sim, do Estado, para organizar e fiscalizar o serviço de transporte individual de passageiros. Entregar todo o controle da atividade a uma empresa privada gera riscos. Se por um lado, o “monopólio” das companhias de táxi é pernicioso, temos de cuidar para, com a ausência de regulamentação, não transmitirmos simplesmente ao Uber o mesmo monopólio. Estaríamos, neste caso, apenas a trocar uma corporação por outra.
Os serviços de táxi não vão bem? Ok. Mas não vamos atirar fora a água suja com a criança junto...
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