O Stephen Georg dizia: que nada seja onde fracassa a palavra. E o poeta português Eugénio de Andrade perguntava: Que fizeste das palavras? Que contas darás das vogais e das consoantes? Já Hilde Domin, por sua vez, lembrava, filosoficamente: “Wort und Ding legen eng aufeinander; die gleiche Körperwärme bei Ding und Wort”.Quer dizer: Palavra e coisa jaziam juntas; tinham a mesma temperatura a coisa e a palavra...! E podemos complementar: Sim, no início era assim. Mas, depois, palavra e coisa se separaram. E, com certa melancolia, podemos acrescentar: E nunca mais se encontraram.
Pois bem. É disso que queremos falar. Qual é a relação entre palavras e coisas? Há palavras sem coisas? As coisas existem sem nome? Se eu sei a palavra, eu sei a coisa? Ou eu posso dar às coisas qualquer nome? Posso sair por aí trocando os conceitos? O Direito estaria imune à relação “palavras-coisas”? Vamos, pois, ao busílis da questão.
Com efeito, noticiou-se que, no dia 30 de julho último, ocorreu o indeferimento do Habeas Corpus de um acusado na operação “lava jato” que está preso há mais de 500 dias, quando o prazo estabelecido, ainda em 2009, pelo Conselho Nacional de Justiça é de 168 dias na Justiça Federal. Na verdade, o prazo da prisão já triplicou àquele previsto no Manual Prático de Rotinas do CNJ. Entre outros fundamentos da decisão, chama a atenção o início do voto do desembargador-relator do Tribunal Regional Federal da 4ª Região: o excesso de prazo estava autorizado porque o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “um pequeno atraso na instrução, justificado pelas circunstâncias, não conduz ao reconhecimento do excesso de prazo. Nesse ponto, vige o princípio da razoabilidade...”.
Ora, qual é o valor das palavras? Elas significam algo? Ou se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa? A questão que se coloca é: a decisão do STJ utilizada como paradigma poderia ser utilizada para sustentar o contrário, ou seja, a concessão do Habeas Corpus. Podemos imaginar a decisão pelo seu lado inverso. Ela seria assim: “o STJ já decidiu que umpequeno atraso na instrução, justificado pelas circunstâncias, não configura excesso de prazo. No caso presente, já tendo passado mais de 500 dias, é evidente que não se pode mais falar em pequeno atraso. Afinal, há uma nítida diferença entre a palavra pequeno e a palavra grande. Embora não tenhamos um tamanhômetro para medir o que significa excesso de prazo, é facilmente perceptível que o triplo do prazo longe está de ser um pequeno atraso. Ordem concedida, portanto”. Simples, assim.
Veja-se a que ponto chegou o Direito brasileiro. Decisões que servem tanto para um lado quanto para o outro. E por que isso é assim? Porque as decisões, mormente as da operação “lava-jato”, passaram a ser teleológicas, isto é, finalísticas. O juiz sabe que o acusado tem direito ao Habeas Corpus, para ficar nesse caso específico. Mas ele, pessoalmente, não admite que o acusado possa ser solto. Ou fica pensando acerca do que dirá a mídia. E, consequentemente, arruma um argumento a fim de justificar sua decisão. Esse argumento acaba não tendo importância, porque o que importa é o resultado. Os fins justificam os meios. E, assim, arruínam-se as bases do Direito moderno, calcado na limitação do poder e na garantia dos direitos.
Ocorre que, numa democracia constitucional, todo cidadão tem o direito fundamental de saber o porquê está preso há tanto tempo sem uma sentença definitiva do Estado. A aplicação do Direito pressupõe uma técnica. É ela que, empregada adequadamente, evitará arbitrariedades. Ora, se o acusado está preso cautelarmente, não pode se alegar que sua prisão é porque ele já tem uma condenação. Afinal, ele está preso por cautela ou porque houve condenação? E, ainda: o que diz mesmo o artigo 312 do Código de Processo? Ou os juízes têm poder para elaborar uma nova redação do Código?
Não vai bem a doutrina e tampouco a jurisprudência. Decisões não podem ser políticas ou ideológicas. Devem ser técnicas. Salvemos o que sobra da tecnicidade do direito. Numa palavra: se a Medicina fosse como o Direito, estaríamos lascados, porque o médico poderia considerar que tanto faz dizer ventrículo direito ou ventrículo esquerdo. Ou, mesmo, amputar a perna errada.
Que fizemos com as palavras?
André Karam Trindade é doutor em Direito, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da IMED e advogado.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.
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