Para muitos analistas, o fenômeno reflete uma mudança de paradigma, do ideológico para o identitário
Passado mais de um ano da Revolução de Jasmim, é possível uma melhor compreensão das mudanças que se operam no Oriente Médio e no Norte da África. Sem desconsiderar os aspectos particulares de cada caso, pode-se identificar um traço comum aos movimentos que se reproduziram, com maior ou menor intensidade, em 17 países muçulmanos, desde o ato de imolação do tunisiano Mohamed Bouazizi: o impulso autóctone das mobilizações sociais.
Desde o fim da Guerra Fria, diversas sociedades passaram por processos endógenos de reflexão sobre suas identidades. Para muitos analistas, o fenômeno reflete uma mudança de paradigma, do ideológico para o identitário. Para entender a dinâmica das relações internacionais contemporâneas, propõe o escritor libanês Amin Maalouf, será preciso, portanto, compreender antes o que desejam essas complexas identidades que se forjam e a maneira como elas interagem globalmente.
Ao contrário do que o senso comum reproduzia, sobretudo após o 11 de setembro, a identidade que desejam construir os países de maioria muçulmana, como mostram os exemplos da Tunísia e do Egito, contempla participação cidadã de vozes excluídas do processo político, inclusive de congregações religiosas historicamente marginalizadas; inclusão social; e reformas institucionais.
Epicentro das forças políticas e sociais que movimentaram a região, a Tunísia pré-revolucionária convivia com elevadas taxas de desemprego, restrições aos direitos políticos e civis, desigualdade de renda e inexistência de alternância política. Com mais de 20% da população vivendo abaixo da linha da pobreza, o quadro político e socioeconômico no Egito não era distinto. Os egípcios conviviam com taxas de desemprego de 9% em 2010, que atingia majoritariamente a população jovem, e com renda per capita de menos de 3 dólares.
As frustrações com a falta de oportunidades levaram os tunisianos a depor Ben Ali, no comando do governo por 25 anos, e os egípcios, reunidos aos milhares na Praça Tahrir, a destituir o regime de Hosni Mubarak, no poder desde o início dos anos 80. As manifestações de insatisfação popular culminaram, nesses dois países, em processo de transição para democracia com eleições livres e multipartidárias.
Embora as Forças Armadas egípcias ainda exerçam forte influência na política local, o país igualmente avançou no processo de consolidação democrática. Eleições parlamentares foram convocadas; uma Assembleia Constituinte está em fase de organização; e o povo egípcio acaba eleger um presidente — o Guia Supremo da Irmandade Muçulmana, Mohamed Morsi, que vem demonstrando moderação e liderança política interna e internacionalmente.
A vitória expressiva de partidos de orientação religiosa na Tunísia e no Egito, há décadas na clandestinidade, traduz ainda, em última instância, a frustração local com os regimes autoritários e excludentes, embora seculares, do Oriente Médio e Norte da África. Para obter 41% dos assentos da Assembleia Nacional Constituinte, o Ennahdha precisou, entretanto, reinventar- se e adotar um discurso moderado, que defendia, entre outros, os direitos das mulheres. Também no caso egípcio, a Irmandade Muçulmana, com 47% dos assentos na Assembleia do Povo, adotou postura mais conciliatória.
A aspiração dessas sociedades parece ser, pois, a de formação de uma identidade árabe-muçulmana em harmonia com o os direitos humanos, a democracia e a equidade social.
Como consequência das transformações identitárias por que passam, esses países deverão revisitar a maneira como irão relacionar-se com o exterior, o outro. Por essa razão, importa que a comunidade internacional atue de modo a auxiliar a que essas mudanças político-sociais ocorram em benefício da democracia e da prosperidade econômica e social.
caso líbio é um exemplo premente. Um dos maiores IDHs do Norte da África antes do conflito, o país encontra-se mergulhado em violência e ameaçado por grupos extremistas que desafiam a autoridade central. Bem-vinda, a recente democracia líbia prescinde de um enfoque abrangente por parte da comunidade internacional com vistas a auxiliar na consolidação de um governo unificado, inclusivo e multiétnico.
O Brasil tem muito a contribuir. Pode ser útil nesse processo de transição a experiência brasileira com a democracia, os programas sociais e de distribuição de renda, as políticas de gênero, os programas de erradicação da pobreza e de promoção dos direitos humanos, entre outras.
Em sua política externa, o Brasil tem atuado no sentido de aproximar as culturas e sociedades sul-americana e árabe de maneira mutuamente construtiva. Com esse objetivo, voltarão a dialogar em Lima, no início de outubro, os chefes de Estado e de Governo de 22 países árabes e 12 sul-americanos, por ocasião da Cúpula América do Sul-Países Árabes (Aspa). Fundado em 2005, esse foro constitui o instrumento birregional mais eficiente desse processo de conhecimento mútuo. Os sul-americanos deverão ter a oportunidade de interagir com um novo mundo árabe e muçulmano.
O processo de construção identitária é relacional. A maneira como os países lidarão com esses
novos Oriente Médio e África será, pois, determinante. Para tanto, importa começar por rejeitar generalizações que buscam forjar uma percepção negativa sobre os acontecimentos naquela região, como as avaliações apressadas sobre uma suposta incompatibilidade entre identidade muçulmana e regimes democráticos. Quanto mais se conhece sobre o outro a partir dele mesmo, mais se favorecem o diálogo, o desenvolvimento conjunto e a convivência pacífica.
Amena Yassine é diplomata e professora
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