Alguma coisa parece errada com a nossa vida quando amanhecemos vendo as fotos íntimas de um risoto fotografado por uma pessoa que você mal conhece. E toda aquela comunicação estabelecida, através do aplicativo (tão inteligente, tão revolucionário), entre a manifestação da emoção dos donos do risoto e as respostas empolgadas dos animados emoticons das palminhas, do coração partido, da lacraia, dos sushis, do cocozinho e das dançarinas gêmeas.
Tenho andado com saudade até dos cento e quarenta caracteres do Twitter. Quando ele surgiu, muito se falou sobre o desafio e o poder da concisão e sobre as grandes obras que ainda surgiriam pensando esse formato. Continuamos daqui, ansiosamente, esperando.
Esta semana li o início de um diálogo até interessante: juju_cabral disse: “OBA! vou tomar banhoo... delicia ...depois vou pra casa do @nabuco comer pipoca”. Ao que @ricardosegundo respondeu: “quem quer saber se vc vai comer pipoca vai pra puta que pariu”. @ulyssesdepaula, outro promissor candidato a Tolstoi dos novos tempos, anunciou resumo do 11 de Setembro: “pum catapluft tchu papapapapapapa ioioiioioiom tratrtatratrtatraaaaa”. Os #hashtags trending topics indicam os possíveis temas da nova obra-prima contemporânea: #VouAoBanheiro- FazerONumero2 (nada original, até Leopold Bloom já filosofou sobre o assunto), #UFCdaora e #Rodeioanimal.
Eu não sei o que Thomas Pynchon faria hoje, em uma gruta, só com argila, sangue de animal e excrementos de morcego, mesmo saindo quarenta mil anos na frente. Talvez nem o que os empolgados com o risoto andam fazendo. Mas é sempre bom lembrar que havíamos construído uma civilização crítica bastante interessante, bem-humorada, capaz de manifestar suas ideias, suas emoções, sua linguagem, sem depender daquele bonequinho yellow face, rubro, que chora, ri, beija, grita, pisca, lambe.
É claro que isso parte da minha frustração por ainda não ter entendido para que serve o símbolo da melancia, da avestruz e da tartaruga urinando. Essa redução vem sendo praticada pelos editores de jornais de cultura já há um certo tempo: “duas estrelinhas para a obra de Antunes Filho”. Oscar Wilde ofereceu à Humanidade o ensaio “O crítico como artista”, falando sobre este senso, comum à todo cidadão grego. Sobre sua decadência e importância. Palminhas para Oscar Wilde.
Digressão perigosa: o que são esses avisos de privacidade em um lugar como o Facebook? É como frequentar uma orgia e pedir pra que não passem a mão em você.
O.k., ninguém será mais Korngold, que compôs sua primeira obra-prima com dezessete anos. Indicado por Mahler como o talento raro, teve aulas com Zemlinsky. Mais tarde, judeu, fugiu da Europa para Hollywood. Fez trilhas para cinema, ganhou Oscars, voltou para a Europa e, segundo críticos preconceituosos, havia perdido sua genialidade em alguma colina de Los Angeles. Tom Stoppard respondeu para uma pilha de jornalistas parvos que os maiores talentos da literatura que ele reconhece estão escrevendo para a TV americana. Resposta difícil de se lidar, hein?
“A aventura” do Antonioni, “Playtime” de Tati, a obra de Babel, Bulgakov, quase todos os grandes artistas dependeram do tempo que enterrou as injustiças e os preconceitos e conduziu o que era nobre até o lugar clássico e eterno na história da nossa cultura.
Tomara que o esperado gênio dos novos tempos e das novas formas e linguagens não se distraia do seu tempo precioso arremessando as três vidas de suas galinhas contra porquinhos que explodem.
Segunda digressão (a minha fala preferida de “O livro de itens do paciente Estevão”): “Oitenta e três por cento dos consultados votaram pela opção do seu apodrecimento seguido de devoração. Setenta e quatro por cento desses eleitores, diga-se de passagem, também compram regularmente produtos on-line de decoração doméstica.
Não sei muito bem o que isso significa, mas eles escolheram.”
Antonio Abujamra fez 80 anos. Não tenho palavras pra dizer o que devo a ele e ao Antunes. Minha carinha amarela mandando beijos, duas mãos aplaudindo, um fatia de um bolo de aniversário, um Homer Simpson segurando uma caneca de chope, um coração cortado por uma flecha, um mar de uma gravura japonesa.
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