Toxoplasmose é uma doença infecciosa de características muito variáveis. Também conhecida como doença do gato, pode ter implicações sérias para o feto quando adquirida durante a gravidez.
Em muitos casos, os sintomas da toxoplasmose podem não se manifestar ou serem confundidos com os de uma gripe e a pessoa nem fica sabendo que se infectou. Noutros, os sintomas incluem febre diária, gânglios intumescidos e espalhados pelo corpo, mas a doença regride em algumas semanas, embora possa voltar se houver queda de resistência, porque o Toxoplasma gondii não é eliminado do organismo.
No entanto, se a imunidade estiver realmente comprometida, como ocorre nos pacientes com AIDS, por exemplo, há um tipo grave de toxoplasmose, a neurotoxoplasmose, que pode ser fatal se não for diagnosticada e tratada adequada e precocemente.
AGENTE DA TOXOPLASMOSE
Drauzio – Quais são as principais características do Toxoplasma gondii, o agente da toxoplasmose?
João Silva de Mendonça – O Toxoplasma gondii é um protozoário, genericamente chamado de parasita, que está amplamente disseminado por quase todo reino animal. Aves, pássaros, mamíferos, inclusive os humanos, podem ser infectados por ele e manifestar uma doença de características mais sérias ou mais leves.
Drauzio – Como adquirimos esse parasita?
João Silva de Mendonça – Existem duas maneiras bem conhecidas de aquisição do Toxoplasma gondii. Uma delas ocorre em ambientes onde existam gatos, os grandes disseminadores do parasita na comunidade ambiental. Gatos infectados eliminam os ovos desse protozoário pelas fezes, poluem o ambiente e contaminam quem por ali circula. Não é necessário entrar em contato direto com eles, basta dividir os mesmos espaços. Imaginemos, por exemplo, alguém que detesta gatos e vai visitar um amigo que tem um animal desses em casa, mas que o tranca em outro aposento para que nem chegue perto do visitante. No entanto, ele se senta numa poltrona onde o gato esteve deitado e sem querer leva a mão à boca. Pronto, está fechado o circuito microscópico: a partir da poluição ambiental provocada pelo gato, o parasita infectou o ser humano.
Drauzio – Mesmo os gatos bem cuidadinhos que vivem em apartamentos?
João Silva de Mendonça – Mesmo eles, porque podem adquirir o Toxoplasma gondii através da alimentação. Mamíferos infectados possuem microcistos, isto é, formas residuais do parasita, invisíveis a olho nu, mas presentes em seus músculos. Dependendo do mamífero, sua carne pode ser usada como alimento, tanto de gatos quanto de homens, e estará fechado o circuito. No estômago e nos intestinos, o protozoário é liberado e dissemina a infecção pelo ambiente. Essa é a segunda maneira pela qual se pode adquirir o parasita.
Drauzio – O gato não precisa estar doente para transmitir o protozoário?
João Silva de Mendonça – O gato habitualmente não adoece. Aparentemente está saudável, mas eliminando o protozoário pelas fezes durante certo período.
Drauzio – E os cachorros também transmitem essa doença?
João Silva de Mendonça – O cachorro pode ter toxoplasmose como os homens, só que não é um eliminador fecal. Apenas os felídeos são transmissores do Toxoplasma gondii e o gato é um transmissor importante porque é um animal domiciliado. É obvio que um tratador de onça no zoológico pode adquirir a doença desse felídeo que também é eliminador fecal do parasita.
Drauzio – Uma vez infectado, o gato transmite o parasita a vida inteira.
João Silva de Mendonça – Não. O gato é infectante apenas durante o período em que o ciclo do protozoário está se realizando. Depois, passa a ter apenas as formas residuais em seus músculos.
Drauzio – E os pombos, que perigo representam?
João Silva de Mendonça – Quando não se conhecia bem o ciclo biológico doToxoplasma gondii, havia a preocupação de que os pombos pudessem transmiti-lo. Na verdade, na fase adulta, quando o pombo está doente, pode eliminar o protozoário pela secreção dos olhos, mas haveria a necessidade de um contato muito íntimo com a ave para fechar o ciclo. Por isso, pombos não são considerados uma forma importante de disseminação do parasita.
RISCO NA GRAVIDEZ
Drauzio – Muitos obstetras recomendam que as mulheres grávidas não comam carne crua ou mal passada durante a gravidez com medo de que peguem toxoplasmose. O que representa essa doença durante a gestação?
João Silva de Mendonça – A realização do exame de toxoplasmose faz parte de um conjunto de exames rotineiros de assistência pré-natal.
Resultado negativo indicando que a mulher nunca teve contato com o parasita reflete uma situação de potencial preocupação, porque se ela se infectar durante a gravidez poderá transmitir o parasita para seu concepto e a criança nascerá infectada. Nesse caso, é de fundamental importância recomendar que a mulher não vá a lugares frequentados por gatos e não coma carne crua, mal cozida ou mal passada para evitar que adquira a infecção durante a gravidez.
Resultado positivo indicando toxoplasmose antiga e curada traz tranquilidade total, pois a mulher está protegida contra a doença e não vai adquiri-la outra vez.
Drauzio – Esse exame permite distinguir a toxoplasmose atual da cicatriz de uma doença pregressa?
João Silva de Mendonça – Permite. Embora incomum, o mais assustador é quando o exame revela que a gestante está doente naquele exato momento, pois a transmissão congênita do parasita pode provocar uma lesão destrutiva no feto com sequelas importantes para o recém-nascido no futuro.
Drauzio – Que tipo de problemas gera a transmissão congênita do Toxoplasma gondii?
João Silva de Mendonça – Os problemas variam de acordo com o trimestre da gravidez em que ocorre a infecção materna.
No primeiro trimestre, se a mãe está com a doença ativa e há a transmissão para o concepto, o estrago é muito grande. A criança pode ter encefalite e nascer com as sequelas da doença, ou apresentar lesões oculares cicatriciais e prejuízo importante da visão, entre outras consequências. É bem verdade que, nessa fase, não é incomum o abortamento espontâneo tal o tamanho dos danos que o parasita provoca no concepto. De qualquer maneira, nesse período, a probabilidade de transmissão para o embrião é menor, não ultrapassa a 10%, 20% dos casos.
No segundo trimestre, a transmissão ocorre em 1/3 das gestações em que a mãe apresenta a doença ativa, mas o feto consegue conviver razoavelmente com as agressões do parasita que serão mais atenuadas, embora possam ocorrer pequeno retardo mental e problemas oculares, por exemplo.
No terceiro trimestre, a transmissão da mãe para o feto é muito comum, mas a doença se mostra mais benigna e muito menos problemática para o recém-nascido.
Resumindo: do começo para o final da gravidez, cresce o risco de transmissão do parasita da mãe para o feto, mas diminui a gravidade da doença para o recém-nascido.
TRATAMENTO DURANTE A GRAVIDEZ
Drauzio – Poucas são as drogas que podem ser utilizadas com segurança durante a gravidez. Como o tratamento da toxoplasmose envolve a administração de drogas razoavelmente tóxicas, que medidas terapêuticas podem ser adotadas?
João Silva de Mendonça – Se a mulher está com a doença ativa, portanto com risco de transmissão congênita, a primeira atitude é evitar que essa transmissão ocorra. Para tanto, existe um antibiótico relativamente inocente para a grávida que se chama espiramicina.
Na sequência, é preciso verificar se o concepto foi ou não infectado, um passo bastante delicado, porque implica a coleta de material do líquido amniótico por punção para pesquisar a presença de componentes do parasita. Esse exame é feito depois da décima sexta, décima oitava semana de gravidez, e o material examinado por técnicas avançadas de biologia molecular. Se o feto não foi infectado, a espiramicina é mantida até o final da gravidez para reduzir o risco. Se já foi, a única maneira de tratá-lo intraútero é dando remédios potentes para a mulher. São remédios potencialmente tóxicos que requerem a avaliação do risco-benefício no sentido de tratar o feto e evitar os malefícios da toxoplasmose congênita. Como se vê, são decisões médicas seletivas e complicadas.
Drauzio – Difíceis porque têm de levar em conta a vontade da mãe, que destino ela pretende dar a essa gravidez. Isso cria problemas éticos de solução realmente complicada.
João Silva de Mendonça – Cria problemas éticos e temos que respeitar a normatização legal e a normatização ética que não aceitam a interrupção da gravidez por esse motivo.
Drauzio – A toxoplasmose congênita não é nem discutida como motivo para a interrupção de gravidez. No entanto, a realidade é que muitas mulheres optam por interrompê-la nesses casos.
João Silva de Mendonça – São decisões tomadas meio clandestinamente das quais não devemos participar. Do ponto de vista legal e ético, nosso comportamento tem de ser diverso.
Drauzio – O que devem fazer durante a gravidez as mulheres que têm gato em casa e gostam mais dele do que do marido?
João Silva de Mendonça – Talvez o melhor procedimento seria fazer o exame de toxoplasmose antes de engravidar para verificar em que situação se encontra. Se já teve a infecção, está imune, pode engravidar e deixar o gato à vontade, andando pela casa, porque não vai pegar a doença outra vez. Se o resultado dos testes for completamente negativo, indicando que a mulher nunca esteve exposta a esse parasita, é melhor que se afaste do gato durante a gravidez.
TOXOPLASMOSE NOS IMUNODEPRIMIDOS
Drauzio – A toxoplasmose pode ter características especiais nas pessoas debilitadas imunologicamente, como os doentes com AIDS ou outras doenças que provocam depressão da imunidade.
João Silva de Mendonça – Essa é uma situação que permite traçar um pano de fundo. Quem se contamina com o parasita da toxoplasmose, durante sua replicação ativa, apresenta uma fase aguda da doença na qual podem aparecer certos sintomas como febre e gânglios enfartados. A doença dura algumas semanas e regride sem maior severidade.
O quadro também pode ser silencioso e não existir sintoma nenhum. Qualquer que seja a reação – e isso vale para todos nós – ninguém consegue eliminar o parasita que passa a conviver conosco de forma latente, residual, em microcistos invisíveis a olho nu, mas presentes na carne de animais que será utilizada como alimento e em toda nossa topografia muscular. Isso não é mal. Todos nós somos assim e eles não costumam dar problemas. Nossa imunidade garante que fiquem bloqueados.
Se a imunidade cai, a coisa muda de figura. A pessoa não consegue mais reter o parasita dentro dos pequenos cistos residuais, e ele volta à atividade sem encontrar barreiras. E, por não as encontrar, agride o organismo para valer. Agride o sistema nervoso central, provocando um quadro de encefalite grave. Agride o pulmão, causando pneumonite. Agride o coração, que é um músculo, e causa a miocardite. Todas essas são doenças que, se não forem identificadas e tratadas precocemente, poderão ter consequências desastrosas para a vida dos pacientes.
Drauzio – Quais são as principais características da encefalite?
João Silva de Mendonça – A encefalite ataca o sistema nervoso central e provoca sintomas como dor de cabeça, febre, perda da noção de relacionamento ambiental, convulsões, estado de torpor que evolui para coma. É uma doença muito grave que será fatal se não for diagnosticada e tratada precocemente.
Drauzio – Qual a diferença entre pneumonite e pneumonia?
João Silva de Mendonça – Nós, os médicos, preferimos usar a palavra pneumonite para identificar uma doença do pulmão causada pelo protozoário e diferente da pneumonia clássica provocada pelo pneumococo. Normalmente, a pneumonite é mais difusa e compromete o pulmão extensa e bilateralmente, enquanto a pneumonia é mais segmentar e acomete só uma área do pulmão.
COMPLICAÇÕES OCULARES
Drauzio – Que complicações oculares importantes a toxoplasmose pode provocar?
João Silva de Mendonça – A toxoplasmose pode provocar coriorretinite, uma inflamação no fundo do olho. Se o surto for leve, pode passar despercebido; se for intenso, a visão fica turva e diminuída. Caso a infecção pelo Toxoplasma atinja a mácula, pode causar cegueira.
Em geral, a coriorretinite se manifesta na adolescência ou no adulto jovem.
Drauzio – Existe tratamento para a coriorretinite?
João Silva de Mendonça – O tratamento é à base de sulfa e pirimetamina. Cortisona pode também ser indicada para reduzir a inflamação. Não tratada adequadamente, a coriorretinite pode levar à perda parcial ou total da visão.
INCIDÊNCIA DA INFECÇÃO
Drauzio – Se considerarmos cem adultos, em média, quantos já terão sido infectados?
João Silva de Mendonça – Isso varia de região para região. Vamos considerar São Paulo, em particular. As cifras são altas. Na população adulta, 70%, 80% dos indivíduos têm exame sorológico identificando infecção pregressa. Em estados onde o consumo de carne é mais alto como os do sul do Brasil, por exemplo, os índices ultrapassam os 90%. Na França, sobretudo pela ingestão de carne de carneiro, um dos animais mais infectados pelo parasita, o número de infectados se aproxima dos 100%.
Drauzio – Das pessoas saudáveis que foram infectadas pelo Toxoplasma gondii, quantas ficam doentes?
João Silva de Mendonça – O adoecimento da toxoplasmose na sua forma clássica com febre, ínguas, gânglios inchados pelo corpo, que dura semanas, acomete a minoria dos infectados. Talvez de 10% a 20% dos casos. Portanto, entre 80% e 90% têm infecção inaparente, silenciosa.
SINTOMAS, EVOLUÇÃO E TRATAMENTO DA DOENÇA
Drauzio – Vamos retomar o quadro clínico da toxoplasmose nas pessoas que não são imunodeprimidas. Quais são os principais sintomas da doença?
João Silva de Mendonça – Os sintomas mais comuns são febre e, não obrigatoriamente, a presença de gânglios linfáticos que se avolumam, ficam um pouco dolorosos e podem ser percebidos pela palpação no pescoço, na nuca, atrás da orelha, nas axilas e regiões inguinais. A pessoa pode sentir também mal-estar e dores musculares.
A toxoplasmose é uma doença de evolução lenta, dura semanas. Nas pessoas com a imunidade elevada, pode ser tratada ou regredir espontaneamente, isto é, o parasita fica circunscrito numa situação residual apenas.
Drauzio – Você disse que em 80%, 90% dos casos, a infecção é absolutamente assintomática. Nos 10% ou 20% que restam, as pessoas podem ter sintomas, mas parte delas se cura espontaneamente sem necessidade de intervenção médica. Como se elegem os doentes que merecem ser tratados?
João Silva de Mendonça – Deve-se tratar o paciente sintomático, aquele que manifesta sintomas prejudiciais e desconfortáveis, uma vez que dessa forma se acelera a recuperação.
No passado, duas ou três décadas atrás, tínhamos dúvidas se os remédios específicos usados para a toxoplasmose eram realmente ativos. Essa dúvida não mais persiste. Basta ver como reage o paciente com comprometimento imunológico e com neurotoxoplasmose.
Em se tratando dos imunocompetentes, a doença irá desaparecer sozinha, depois de um mês, um mês e meio de duração. Entretanto, a prescrição médica para encurtar esse período será muito útil para os pacientes com sintomas,
Drauzio – É um tratamento complicado, de difícil aceitação?
João Silva de Mendonça – Não é muito complicado. São remédios antigos como a sulfadiazida associada à pirimetamina, medicamento que já mereceu preocupação quanto às características de toxicidade. Trinta anos atrás, a medicina usava pirimetamina sem conhecer direito seus ciclos de metabolismo e eliminação. Hoje, eles são bem conhecidos e lida-se melhor e com mais segurança com esse medicamento.
Drauzio – Durante quanto tempo deve ser mantido o tratamento e a recuperação, quando acontece, é completa?
João Silva de Mendonça – O tratamento deve ser mantido durante algumas semanas, nunca menos do que três. A recuperação é completa. A resolução dos gânglios aumentados é um pouco lenta de tal sorte que a pessoa ainda pode apresentar gânglios menores do que estavam na fase aguda, embora maiores do que o normal, mas aos poucos o quadro irá se recompondo.
Drauzio – Depois de infectada, curando-se espontaneamente ou com o uso de medicamentos, a pessoa pode adoecer novamente ou adquire imunidade?
João Silva de Mendonça – A pessoa passa a ter o parasita residual em seus músculos. Se ela se expuser novamente, terá o que chamamos de reforço imunológico, sem risco de adoecimento. Se voltar a adoecer, será por causa de seu próprio parasita residual, o que geralmente significa queda das defesas orgânicas.
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