GACC - Grupo de Assistência à Criança com Câncer

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Desde o início de suas atividades, em 1996, o GACC - então Grupo de Apoio à Criança com Câncer - existe para aumentar a expectativa de vida e garantir a oferta e a qualidade global do tratamento oferecido integral e indistintamente a crianças e jovens com câncer, diagnosticados com idades entre 0 e 19 anos incompletos, independente de sexo, cor, religião ou posição socioeconômica.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

O calvário das crianças Guarani Kaiowá contaminadas por agrotóxicos

Estudantes da escola indígena da aldeia Guyraroká brincam na cerca com a fazenda vizinha da comunidade.
Eram cerca de 15 crianças Guarani Kaiowá, com idade entre 6 e 9 anos, sentadas à mesa do refeitório da escola indígena da aldeia Guyraroká. Tomavam o café da manhã, servido sempre antes do início das aulas, às 6h. Mas naquela manhã de segunda-feira, enquanto comiam a merenda, os estudantes foram surpreendidos por uma nuvem branca de pó de calcário e agrotóxico, trazida pelo vento de uma área vizinha à comunidade. Em poucos minutos, toda aldeia foi coberta. E assim permaneceu, entre os dia 6 a 11 de maio, período em que vários indígenas —em sua maioria crianças e idosos— apresentaram sintomas de intoxicação por pesticidas, como irritação da pele, enjoo, diarreia e dores de cabeça.

A aldeia Guyraroká ocupa uma área de 55 hectares retomada pelos Kaiowá, em Caarapó, Mato Grosso do Sul, a cerca de 275 quilômetros da capital Campo Grande, onde aguarda pela demarcação de suas terras. A escola da comunidade fica a 50 metros da cerca que separa o território indígena (TI) da fazenda Remanso II. As crianças foram as primeiras a serem afetadas, ao ingerem os alimentos cobertos pelo pó. “Não tivemos como evitar. Elas já estavam com o leite e o pão na mão, mas tiramos o que deu tempo de tirar. A poeira pegou a gente de surpresa. Tinha um cheiro forte. Tentamos cobrir o que foi possível na cozinha”, contou a cozinheira Gilma Guarani Kaiowá.
Nos dias que seguiram, as hortas da comunidade e os alimentos também foram prejudicados. “Não temos muita comida na aldeia. Fica complicado jogar fora, porque é o que a gente tem pra comer. Tentamos proteger, mas a poeira cobriu tudo. Afetou todo mundo, de bebê a idoso. Muita gente passou mal”, afirma a líder indígena Erileide Guarani Kaiowá. Ela explica que não é de agora que a aldeia tem feito denúncias sobre a situação na região. A Guyraroká é composta por 120 pessoas Guarani Kaiowá, sendo a maioria crianças e adolescentes. Cercados por plantações de cana, soja e de milho, os indígenas ficam expostos à aplicação de pesticidas, que frequentemente são pulverizado nas áreas rurais por aviões e tratores.
Elaine Guarani Kaiowá, 80 anos, ainda enfrentava os sintomas de intoxicação por defensivos agrícolas quando a reportagem esteve na aldeia, em junho. Segundo ela, sua filha e a neta também passaram mal. “Muito enjoo, diarreia e dor cabeça”, conta. Os moradores também afirmam que 15 galinhas e dois cachorros das famílias morreram envenenados. Sem acesso fácil a médicos e remédios, a anciã relata que recorreu às raízes e plantas medicinais para tratar os sintomas, mas teme que o avanço das plantações sobre as áreas indígenas acabe com as opções naturais para tratamentos.“A gente mora beirando a cerca. Nossas coisas pra fazer comida ficam tudo ali [aponta para um lugar onde as panelas estavam secando]. A gente não tem médico. Não tem remédio. O que resta é ir atrás das raízes, que daqui uns dias não vai ter mais, nossas florestas estão tudo virando pasto e lavoura”.
Elaine Guarani Kaiowá, 80 nos, mostra as raízes que tem usado para tratar os sintomas de intoxicação.Outros indígenas também recorrem às raízes e plantas medicinais ao invés da medicina tradicional devido às ameaças que relatam sofrer. É o que conta C. que prefere não revelar seu nome por segurança, segundo quem os moradores já escutaram que se, os Kaiowá fossem ao hospital regional, os fazendeiros pediriam “um favor” aos agentes de saúde. “Eles dizem que podem pedir para trocar o remédio, para não nos atenderem. Tem indígena aqui que já escutou que ‘pelo menos assim a gente morre mais rápido’”, afirma.
Adelaide Guarani Kaiowá estava em casa quando a poeira tomou todo o seu terreno. Ela e os dois filhos saíram o mais rápido que puderam do local. “Eu cheguei a gritar para o homem que estava no trator pedindo pra parar, mas não adiantou. Passamos muito mal. Todos aqui em casa ficaram muito enjoados e com dor na barriga”.
Adelaide com os filhos, na aldeia Guyraroká.Os Kaiowá reclamam que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não tem conseguido garantir um atendimento médico adequado à comunidade. “A gente liga pra lá, mas eles nunca podem atender. Falam que não tem gasolina e nem dinheiro para abastecer o carro, que falta medicamento e profissionais”, diz Erileide. O Ministério da Saúde alega que passou por dificuldades jurídicas para solucionar o pagamento da prestação de serviços executados por organizações não governamentais (ONGs) aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), mas que “os recursos destinados às entidades conveniadas que prestam serviços para assistência à saúde indígena já foram efetivados no dia 3 de junho”. Contudo, uma reportagem do jornal O Estado de S.Paulopublicada em 30 de junho relatou a precariedade do atendimento à saúde indígena na região, apesar de a organização responsável pela administração e execução do serviço ser a recordista no recebimento de verba do Governo Federal para este fim.Quanto à falta de atendimento médico aos indígenas intoxicados, o escritório da Sesai em Caarapó afirmou que ficou sabendo do caso somente depois de dias pela mídia local, e que não houve denúncias da aldeia Guyraroká a respeito, nem pedido de atendimento médico. O órgão comunicou a Vigilância Sanitária, que esteve na aldeia, um mês depois do ocorrido, para coletar amostras da água e alimentos, a fim de verificar se houve contaminação.
Já o Ministério Público Federal informou que está investigando a situação. “Segundo relatos e provas colhidas no local, houve aplicação de produtos químicos em plantação a menos de dez metros da comunidade indígena, que foi seriamente atingida, causando mal estar e diversos sintomas físicos, principalmente em crianças e idosos”, afirmou o MPF.
A família de Marlinho Guarani Kaiowá também foi afetada pelo veneno. O indígena é filho de Ambrósio Vilhalva, um dos principais líderes da etnia, assassinado em 2013. “Hoje, a gente vive aqui cercado de cana e milho. Já acabaram com as nossas florestas. É difícil encontrar caça. E nossa água e comida acabam envenenadas por esses produtos. Eles nos cercam como se fôssemos porcos, mas o Guarani Kaiowá é guerreiro e enquanto houver um de nós vivo vamos lutar pela nossa terra, pelos nossos direitos”, diz Marlinho, emocionando-se ao lembrar a luta do pai.

Demarcação de terras deixa comunidade vulnerável

A situação dos Kaiowá se complicou em 2014, quando a segunda turma do Supremo Tribunal Federalinvalidou a demarcação de suas terras, com base no Marco Temporal —tese político-jurídica, apoiada pela bancada ruralista, que prevê o direito à demarcação somente aos povos indígenas que tinham terras sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. A comunidade indígena ingressou uma ação rescisória, que deveria ser julgada pelo STF no dia 27 de junho, mas a pauta foi adiada para outubro. “Nossa expectativa é que o Supremo tenha em mente que são vidas que estão sendo julgadas”, afirma Erileide.
Estudantes da escola indígena de Guyraroká comem a merenda no intervalo entre as aulas. Ao fundo, o limite entre a comunidade e área rural vizinha.Para Adelar Cupsinski, advogado do Conselho Indigenista Missionário e da Comunidade indígena Guyraroká, o processo que invalidou a demarcação tem vários pontos críticos. “Foi negado aos indígenas o acesso à justiça, em nenhum momento eles foram escutados”. Para o advogado, ao invocar a tese do Marco Temporal, a segunda turma do STF ignorou o laudo antropológico existente, que indica a presença dos indígenas nas terras antes de 1988.
Sem a demarcação, os indígenas ficam mais vulneráveis. Os agrotóxicos são usados de forma desenfreada sem levar em conta a população que vive entre as lavouras. A última ação do MPF voltada ao combate de irregularidades na aplicação de agrotóxicos por empresas de aviação agrícola na região, a Operação Deriva II, aconteceu em 2017. Na ocasião, no Mato Grosso do Sul, “13 aeronaves foram interditadas pela Anac, sendo que uma delas acabou apreendida criminalmente pela Delegacia Especializada de Combate ao Crime Organizado (Deco). Nove empresas foram fiscalizadas e oito autos de infração foram expedidos, totalizando 1.865.672,00 de reais em multas”, informou a assessoria de imprensa do órgão.
Duas grandes usinas de cana mantêm negócios em Caarapó: a Raízen e a NovAmérica. De acordo com o Ministério Público Federal, a Raízen, holding formada pelas multinacionais Shell e Cosan, chegou a assinar um acordo, em 20 de abril de 2012, com a Funai, onde se comprometeu a não mais comprar cana-de-açúcar produzida nas fazendas que incidem sobre a Terra Indígena Guyraroká, então declarada pelo Ministério da Justiça, em 2009. O acordo, a fim de amenizar o uso de venenos sobre a aldeia, teve validade de três anos e não foi renovado. Já a NovAmérica disse que tem plantações em regiões reivindicadas pelos Kaiowá da aldeia Guyraroka, mas que iniciou seu trabalho nessas terras somente após o julgamento da demarcação transitar em julgado. Questionada sobre o recurso no STF, a empresa afirmou que “recorrer a justiça é um direito de todo mundo”. Perguntada se tinha terras arrendadas na fazenda Remanso II, a assessoria da empresa disse que não tinha informações a respeito.
De acordo com a Raízen, a NovAmérica é um importante fornecedor de cana-de-açúcar, da região do Mato Grosso do Sul. A companhia afirmou que “mantém seu compromisso de proteção aos direitos das comunidades indígenas e segue rigorosamente sua conduta de não adquirir cana-de-açúcar de fornecedores de áreas declaradas indígenas na região”. A empresa explicou que ‘a diretriz já se tornou parte de sua política de compliance e é hoje uma prática estabelecida em toda a operação da companhia”. A Raízen ainda disse que “não mantém qualquer relação com a fazenda Remanso II”.
O EL PAÍS fez inúmeras tentativas de contato com a administração da fazenda Remanso II para esclarecer o episódio, mas não conseguiu falar com nenhum responsável pelo local. A reportagem também entrou em contato com os sindicatos rurais das cidades de Dourados, Caarapó e com a Federação da Agricultura e Pecuária do MS solicitando outros contatos com a fazenda, mas nenhum número obtido com as entidades atendeu.

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