Uma das principais vozes contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o governador do Maranhão Flávio Dino (PCdoB) defendeu, que o mérito do afastamento da petista deve ser judicializado não só no Brasil, mas também levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos -- a qual o Brasil é signatário.
Apesar das duras críticas ao processo, ele diz que espera ter uma relação saudável com o presidente interino Michel Temer e afirma haver uma separação entre os argumentos jurídicos e o lado institucional do governador Flávio Dino.
Na entrevista, o ex-juiz federal também comenta o apoio da família Sarney (que sempre fez alianças com o PT) ao impeachment, a possível união da esquerda após o afastamento de Dilma e afirmou ver com preocupação o que chama de "direitização" das instituições no país.
O senhor foi uma das maiores vozes contrárias ao impeachment de Dilma. Após esse discurso todo, como fica a relação agora com o governo interino instalado?
Flávio Dino - Primeiro reitero minha crítica a esse processo. Está muito evidente que não houve crime de responsabilidade e por isso não caberia impeachment. Aparentemente esse é um debate superado, mas a meu ver não é --acho que considerar superado seria desrespeitoso ao Senado. Agora é que começa o processo, liderado pelo presidente do Supremo [Ricardo] Lewandovsky. De fato teremos um debate de mérito agora, e é um dever dos democratas e dos que acreditam na autoridade da Constituição continuar essa defesa. Continuo firme nesse ponto de vista. Mas, além disso, temos uma situação de fato, um governo interino, e é obrigação minha, como governador, me relacionar com ele. Há uma distinção entre a visão política e jurídica, que mantenho intocada, e a necessidade de dialogar; e é isso que estamos fazendo nesse momento.
Acho que, posteriormente, deve ser provocada a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sobretudo se o Supremo disser que o tema não é judicializável
Apesar de ser do PCdoB, aliado histórico do PT, o senhor não foi apoiado em nenhuma das candidaturas ao governo do Maranhão pelo PT. Ao contrário, o partido sempre apoiou no Estado a família Sarney. Mas nesse processo foi o senhor quem defendeu Dilma, e os Sarney apoiaram o impeachment. O PT foi, digamos, mordido pela cobra que criou?
Acho que o PT enfrenta um processo de debate interno, de reflexão, que acompanhamos com muita atenção. Esse é uma questão muito viva, sobre a natureza das alianças que podem e devem ser feitas, e o nível de concessões cabíveis para manter essas alianças. Acho que é uma questão muito candente pelo próprio resultado recente, em que grande parte desses aliados do chamado centro politico optou por um outro caminho que não a sustentação desse ciclo político iniciado por Lula e continuado por Dilma. Acho que situações como do Maranhão são bem ilustrativos. O PMDB de hoje é bem distante daquele democrático e progressista que defendeu a assembleia constituinte dos anos 80, por exemplo. Essa crise traz uma reflexão sobre a esquerda, mas também sobre esse dito grupo do centro democrático, que infelizmente acabou sucumbindo a teses retrógradas e exóticas --que são muitas dessas que acabaram sustentando esse processo de impeachment.
Mas depois de receber tantos apoios, lutar pelo impeachment não foi uma traição dos Sarney?
De um modo geral, sem me referir particularmente aos Sarney, acho que é muito estranho que pessoas que até ontem apoiavam, aplaudiam e se beneficiavam desse governo migrem para uma oposição diametralmente oposta. Fica bastante esquisito que, num quadro de polarização, você tão abruptamente negar o ponto de vista que defendeu por 13 anos. Acho que isso não se refere só ao grupo Sarney, tivemos muitos outros casos em que essa metamorfose ocorreu. Isso não é bom porque precisamos de estabilidade política, e isso só se faz com maior nível de nitidez ideológica, tanto dos atores, como dos programas e das alianças.
Reaglutinação da esquerda institucional partidária acabou sendo um subproduto positivo nesse quadro de dificuldades
Essa crise servirá para reaglutinar a hoje dividida esquerda brasileira?
Esse é um subproduto da crise, que não foi calculado ou planejado, mas é bem-vindo. Acho que instituições como a Frente Brasil Popular, como a Frente Povo Sem Medo, e essa reaglutinação da esquerda institucional partidária acabou sendo um subproduto positivo nesse quadro de dificuldades. E considero isso um caminho para retomar um ciclo para reconexão entre o pensamento de esquerda progressista avançado com a maioria da sociedade. No terreno institucional é muito importante existir uma frente orgânica similar à frente ampla uruguaia, ou a concertacion chilena, que em determinado momento acabou se conformando com derrotas e se juntando para dar conta de certas tarefas. Temos o risco de retrocessos objetivos de política institucional social e inclusiva. Acho que isso demanda um nível de união mais alta para preservar essas conquistas e possibilitar um ciclo de novas.
O senhora acha que PT fez um governo realmente de esquerda?
Sem dúvida foi um governo com forte presença de esquerda, com politicas de caráter distributivo, que apontavam no sentido da diminuição da desigualdade. Essa são políticas muito especiais para quem tem o pensamento de esquerda. Diria que foi um período cheio de contradições, que avançou pouco em determinados temas, mas foi um período de muitas conquistas sociais. Talvez apenas no curto período de João Goulart e no segundo governo [de Getúlio] Vargas tivemos um governo de tantos avanços e desenvolvimento de conquistas sociais.
Mas o senhor concordava com a política econômica de Dilma? Essa crise não pesou nessa decisão de retirá-la do poder?
Nós sempre descordamos, no nosso partido, assim como os próprios governadores do Nordeste, da política econômica. Pedimos revisão. Acho que, de fato, foi a questão mais aguda. Não há governabilidade politica, institucional apartada de uma governabilidade social. Não se constrói maioria parlamentar se não tiver maioria na sociedade. Quando se pratica uma politica econômica que isola o governante da maioria das pessoas, isso leva a problemas políticos institucionais.
Antes da saída de Dilma o senhor falou que o impeachment era uma espécie de "desculpa" para implantar uma pauta conservadora e liberal no país. As primeiras medidas do governo Temer confirmam isso?
Infelizmente, sim. Eu particularmente gostaria de estar errado, gostaria que determinadas medidas bastante estranhas não tivessem sendo adotadas. Nós temos um processo muito perigoso de "direitização" ideológica das instituições, e infelizmente o impeachment contribuiu com isso. Eu diria que houve até a perda de um certo de pudor na defesa de posições de caráter racista, discriminatório de mulheres e negros, que são subprodutos desse processo. É como se a violência institucional, como a que foi praticada, acabasse despertando outros riscos. A meu ver isso é muito grave.
Nós temos um processo muito perigoso de "direitização" ideológica das instituições
O senhor acha que é possível o Senado absolver Dilma?
Do ponto de vista jurídico, há muita consistência na defesa manifestada pela presidente Dilma. Claro que é um quadro de muita dificuldade, mas teremos um tempo. Qualquer tipo de avaliação hoje incorre no erro de ser datada, não leva em conta que o julgamento vai ocorrer daqui a alguns meses. Acho que é direito e dever da presidente, e direito e dever de todos que se opõem ao impeachment, continuar manifestando a sua crítica.
Judicializar a questão seria uma boa alternativa?
Acho que sim, acho que há um espaço de debate a partir da própria jurisprudência do Supremo sobre a proporcionalidade da sanção. Vamos imaginar que houve alguma irregularidade fiscal, e compraremos com uma irregularidade no trânsito. Vamos imaginar que, num absurdo, um juiz ou uma órgão administrativo, em fase de uma pequena irregularidade, aplicasse a sanção máxima previsa em lei, Qualquer pessoa que lê a minha afirmação vai concordar que é judicializável.
Mas o Congresso não poderia aplicar uma pena intermediária...
Nesse caso, não; mas agora essa é a pergunta que deve ser feita ao Supremo. O impeachment é uma pena de morte de um mandato popular e de direitos políticos de oito anos. Há proporcionalidade dessa pena por pequenas irregularidades contábil e fiscal? Imagino que o Supremo vai se ver diante de uma questão bastante relevante, até porque ele tem feito reexame de penas quando aplicadas por juízes criminais. Então, como o processo de impeachment tem natureza híbrida, é politico e sancionatório, acho muito razoável uma reflexão em torno da questão da proporcionalidade. Assim como acho que, posteriormente, deve ser provocada a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sobretudo se o Supremo disser que o tema não é judicializável, porque aí vai se colocar outra questão que é o esgotamento de recursos jurídicos no sistema interno. Segundo as convenções dessas cortes supranacionais, esse é um pressuposto de atuação, quando fica evidenciado que as cortes se recusaram a reexaminar uma ofensa a um direito. Isso legitima ainda mais o pronunciamento de cortes que são brasileira também, uma vez que o Brasil é signatário delas. É um longo debate pela frente.
Se eu tivesse novamente esse pedido de opinião [de suspensão do impeachment por Waldir Maranhão], assim como me manifestei, faria 20 vezes de novo
O senhor acredita que Dilma teria condições de governabilidade em um eventual volta ao governo?
Acho que a pergunta é invertida: o presidente interino Temer tem condições de governabilidade? Já essa sua pergunta foi respondida politicamente: houve o afastamento na Câmara e no Senado. É muito precoce afirmar para qualquer um de nós, é uma questão que terá que de ser provada nos próximos meses. No julgamento do Senado haverá duas perguntas, como se fosse um tribunal de juri, e não uma só questão. A primeira: há capacidade de Dilma de retornar ao governo? E o outro quesito é há capacidade do governo interino de ter a governabilidade, que a meu ver não está dada hoje?
O senhor foi citado como o mentor da decisão do presidente interino da Câmara Waldir Maranhão (PP-MA) ao anular a votação do impeachment. Mas em menos de 24 horas, ele revogou a própria decisão. Aquilo foi um erro?
O presidente Waldir Maranhão me procurou com um recurso que havia sido proposto pela AGU (Advocacia Geral da União), e pediu minha opinião jurídica. Eu li o recurso, ele trouxe também uma proposta de decisão acolhendo; debatemos isso, concordei com ele, como concordo até hoje, por colocar questões que até hoje não foram examinadas. Havia um ofício do presidente da comissão Senado Raimundo Lira (PMDB-PB) perguntando sobre desfecho do recurso; ele foi provocado a decidir. Politicamente, infelizmente, houve um movimento muito forte que o levou a rever sua decisão. Se eu tivesse novamente esse pedido de opinião, assim como me manifestei, faria 20 vezes de novo.
A revogação frustrou o senhor?
É como eu disse: discordei e discordo.
Ele consultou o senhor pra revogar a decisão?
Ele não consultou; ele me ligou por volta da meia-noite e disse que havia uma pressão muito forte na Câmara e no Senado, e que a medida não tinha apoio politico para ser implementada; invocou principalmente uma movimentação dentro do partido dele, que fez um movimento muito forte. Eu não teria revogado, mas respeito.
O senhor acha que ele deve seguir na presidência da Câmara?
Não há nenhuma razão para ele sair do cargo. Ele exerce a interinidade como Michel exerce. Ele exerce por força do Senado, e o Waldir, por força do Supremo. São situações iguais, acho que ambas as interinidades devem ser respeitadas.
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