O Blog do Guilherme Araújo é um canal de jornalismo especializado em politicas publicas e sociais, negócios, turismo e empreendedorismo, educação, cultura. Guilherme Araújo, CEO jornalismo investigativo - (MTB nº 79157/SP), ativista politico, palestrante, consultor de negócios e politicas publicas, mediador de conflitos de médio e alto risco, membro titular da ABI - Associação Brasileira de Imprensa.
quinta-feira, 20 de março de 2014
A TRINCHEIRA DO DOUTOR FAUSTO
Atrás da mesa de uma sala ampla do sexto andar de um edifício de vidros negros da avenida Paulista, entre pilhas de processos judiciais, dr. Fausto arma sua trincheira. Desembargador do Tribunal Regional Federal (TRF), Fausto Martin de Sanctis protagonizou cenas capitais das mazelas recentes do Brasil. Ao determinar a prisão do banqueiro Daniel Dantas, há quase seis anos, ele sentiu na pele o peso de um Judiciário moldado para proteger as elites e perpetrar a impunidade de quem tem poder. Mas não entrega os pontos.
Sanctis foi um juiz de destaque no combate ao crime organizado, titular da 6ª Vara Federal de São Paulo, especializada em lavagem de dinheiro. Na Operação Satiagraha, que investigou os negócios do banqueiro, ele bateu de frente com o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, que revogou por duas vezes mandados de prisão de Sanctis contra Dantas. O então juiz sofreu 18 processos disciplinares e foi bombardeado com suspeitas de instalar grampos clandestinos no gabinete de Mendes – o que, constatou-se depois, não era verdade.
Anos depois, Sanctis foi promovido, mas tornou-se desembargador em uma câmara previdenciária, bem longe da sua especialidade, o crime. No fim do ano passado, toda a trama de como Dantas passou de acusado a acusador do juiz e do então delegado responsável pela Satiagraha, Protógenes Queiroz, com o apoio de deputados, desembargadores e ministros do STF, veio à tona com o livro “Operação Banqueiro”, do jornalista Rubens Valente. Um exemplar repousa bem em cima dos processos previdenciários da mesa do dr. Fausto. Uma arma na sua trincheira.
Nessa entrevista, o desembargador faz um acerto de contas com o passado e o presente. Para ele, a Satiagraha foi um marco das deficiências brasileiras. “Eu acho que ela revelou o nosso País, que é desigual. Uma desigualdade sustentada por um corpo de instituições que mantêm o status quo, e pouco faz para romper com essa desigualdade que tem atendido a elite do País, em todos os poderes.”
Sanctis evita críticas a Mendes, mas garante não se arrepender de nenhuma decisão, inclusive a ordem de prisão contra Dantas. “Eu o tratei como trato qualquer réu, com a lei. Ele mereceu, de minha parte, o mesmíssimo tratamento que dou ao João da Silva. (…) Cada vez que alguém desafia o Estado, tem que merecer do Estado as devidas consequências.” Na conversa de mais de uma hora no último dia 25, também sobrou tempo para Sanctis falar dos temas dos quais é especialista: crime organizado, lavagem de dinheiro, narcotráfico e liberalização das drogas.
Diário da Região – Como os Estados Unidos veem a ação do Estado brasileiro no combate ao crime organizado?
Fausto de Sanctis – Já dei palestra sobre crime organizado nos Estados Unidos. O Abadia foi de interesse imediato deles. Na época, discuti assuntos de cooperação. Aventei a possibilidade de fazer um acordo de cooperação com os americanos, mas naquela ocasião eles me conheciam pouco. Não vingou minha proposta de fazer algo conjunto. Mas eles gostaram muito da decisão de alienar os bens do Abadia antes da decisão final da Justiça, e lá esse processo é muito rápido. Lá as pessoas confessam (seus crimes), se não a lei de (combate ao) crime organizado pode implicar em pena de morte. Então as pessoas admitem os fatos, e preferem negociar suas penas. Esse bazar (dos bens de Abadia) foi inovador. No início, houve muita resistência do Judiciário (no Brasil), diziam que eu estava atentando contra o direito de propriedade. No fim, os bens barrados por mandado de segurança estão parados, apodrecendo. E o CNJ adotou (o mecanismo dos leilões) depois.
Diário – O PCC é uma ameaça ao Estado?
Sanctis – É uma realidade. Tem que dar força às autoridades que agem contra o crime organizado. Não é possível que um juiz fique anos preso no Mato Grosso do Sul porque o crime organizado tomou conta de tudo (Sanctis se refere ao juiz federal Odilon de Oliveira). Não se deve tratar o crime organizado de maneira romântica, como se o criminoso fosse vítima do Estado. Ao dar auxílio-reclusão à mulher do preso, o Brasil abraça a ilicitude como fonte de entrega do benefício social, quando auxílios desse tipo deveriam ser entregues em decorrência de fato aleatório, como doença. E os familiares da vítimas? É uma opção que o País fez: vamos proteger o criminoso de todas as formas.
Diário – Existe uma leniência do governo em relação aos países vizinhos produtores de droga?
Sanctis – O governo brasileiro deve reconhecer as coisas como elas são, independente de ideologia. O governo deve agir como Estado, e não por questões ideológicas, deixar de reconhecer fatos que são graves nos países vizinhos, (governados por) amigos do governo. Tem que agir mais tecnicamente, e menos ideologicamente. Deve haver tecnicismo, não ações ideológicas, em detrimento da técnica.
Diário – O senhor é favorável à liberalização das drogas?
Sanctis – Não. O vício começa pela droga pequena, a maconha. Ela acelera a comunicação entre os neurônios no cérebro, que exige cada vez drogas mais pesadas. A liberalização só é possível se pudermos responder: nosso sistema de saúde vai estar à altura da quantidade de viciados que poderão vir em razão dessa liberalização? Qual a projeção da quantidade de viciados que poderão vir (ao Brasil) em função dessa medida? As pessoas falam do álcool, que é liberado. Mas o percentual de pessoas que se viciam com o álcool é menor do que com as drogas. Não que eu seja a favor do álcool. Até o governo poderia restringir mais a publicidade de bebidas alcoólicas. Nos Estados Unidos, não se pode carregar uma lata de cerveja na rua, só em um saco fechado. Liberação das drogas implica um país com educação e com sistema de saúde que faça face à quantidade de viciados que possam advir dessa decisão.
Diário – Quando o senhor atuou no interior paulista, nos anos 90, notou uma mistura de público e privado no Judiciário. Isso atrapalha o andamento da Justiça nessas cidades menores?
Sanctis – Totalmente. Isso é muito claro para mim. Acho muito difícil um juiz atuar no Interior. Quando cheguei nessas cidades, percebi que as pessoas não fazem por mal, mas dizem que o juiz é amigo, que (elas) podem frequentar o Fórum. Não, não podem. Há limites éticos, e as pessoas não tinham noção do alcance daquilo. Quando fui para Jales, senti muito isso. O juiz de cidade pequena é convidado para frequentar o clube, usa o mesmo cabeleireiro, e isso cria situações constrangedoras. Eu falava “não, não posso mais estar aqui”. Então toda sexta à noite eu ia para São Paulo e domingo voltava. Não era um ambienta ajustável. E havia ciúmes. Em São Paulo, há impessoalidade. Lá (no Interior), se um falava comigo, o outro tinha ciúme. Para mim, era uma situação nova e surpreendente. É necessário equidistância e respeito à função judicial.
Diário – Hoje o senhor atua em uma câmara previdenciária. Sente saudade da área criminal?
Sanctis – Muita. Mas não abandonei o crime totalmente. Dou palestras, lancei livro ano passado nos Estados Unidos, agora vou lançar outro sobre lavagem (de dinheiro) no futebol. Escrevo artigos sobre corrupção. Gosto muito da área criminal, e jamais descartei a hipótese de voltar.
Diário – Qual sua opinião sobre o livro do Rubens Valente (“Operação Banqueiro”)?
Sanctis – Achei muito bom. Me surpreendeu a quantidade de informações que ele obteve. É um livro de fôlego. Não disse tudo, mas disse muito. Ele mostrou uma equidistância interessante, baseou-se em fontes documentais. Atuou como agente informador, sem tecer conclusões. Essa é a grande sacada do livro. O leitor é que conclui. Ele se lastreou em dados objetivos para dizer: “O fato é esse. Vocês concluam o que realmente aconteceu.” É um trabalho jornalístico de primeira grandeza.
Diário – A Operação Satiagraha foi um marco para o Brasil?
Sanctis – Sim, foi um antes e um depois. Ela (operação) revelou as instituições do País. Os limites éticos, ou o não-limite, das pessoas envolvidas. A mistura entre público e privado, os interesses das partes, os interesses jornalísticos, o modo como o Judiciário atua – e isso vale para todas as instâncias. As forças envolvidas e o poder dessas forças tocarem as instituições – polícia, Ministério Público e Judiciário.
Diário – A operação validou a máxima de que, perante a Justiça, uns são mais iguais que outros?
Sanctis – Essa é a sua conclusão. Eu acho que ela revelou o nosso País, que é desigual. Uma desigualdade sustentada por um corpo de instituições que mantêm o status quo, e pouco faz para romper com essa desigualdade que tem atendido a elite do País, em todos os poderes. As desigualdades existem porque as instituições dão respaldo. O fato de que um morador de favela consiga comprar um eletrodoméstico não significa que o Brasil deixou de ser desigual. Isso só vai acontecer quando a favela deixar de existir. Eu queria deixar bem claro que não critico este governo (da presidente Dilma Rousseff). Isso é histórico, achar que o País está bem, quando não está.
Diário – Quando foi o momento mais tenso da Operação Satiagraha?
Santis – Foi todo tenso (risos). Para mim, foi tenso o equilíbrio entre a preservação do sigilo (da operação) e a necessidade de mostrar à população a verdade do que estava sendo dito e falado em detrimento da imagem das pessoas que agiam de boa fé. Esse era o grande problema. Os fatos eram convenientemente deturpados, e havia necessidade de demonstrar que não era bem assim. Na CPI das Escutas Telefônicas, onde fui ouvido por nove horas, o juiz que representa a legalidade foi chamado de símbolo da clandestinidade. Aquilo foi uma situação exemplar dos absurdos que ocorreram. Também foram tensos os momentos em que as cortes superiores estavam julgando o juiz, e os fatos não tiveram a relevância que mereciam. Mas isso não significou que deixei de decidir de forma ponderada. Tenho a consciência absolutamente tranquila em relação a isso.
Diário – Chegou a perder noites de sono?
Sanctis – Fiquei bastante tenso. Mas estive tão convicto com tudo, tinha uma certeza tão grande do que estava fazendo… Posso ter errado, mas até hoje não consegui encontrar esse erro. Faria tudo de novo, porque tinha convicção dos fatos, que eu li e ouvi no monitoramento (telefônico) com autorização da Justiça, considerado ilegal porque transcrito por agentes da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), fato que eu desconhecia. Mas a transcrição é o que menos importa, a escuta foi absolutamente legal. E o processo era muito mais do que as escutas. Enfim, cumpri a minha missão como esperava de mim mesmo.
Diário – Quantos processos administrativos o senhor enfrentou?
Sanctis – Dezoito. Que eu saiba ainda há dois pendentes. De umas bobagens. Como todos os outros, têm que seguir o mesmo destino (ir para o arquivo).
Diário – Por que acredita que criaram a história de que o senhor teria instalado um grampo no gabinete do então presidente do STF, Gilmar Mendes?
Sanctis – Houve um interesse enorme em denegrir a reputação do juiz. Como não havia nada contra mim, nada melhor do que criar um fato que fosse absolutamente bombástico. Antes da Satiagraha houve uma tentativa de destruir a minha imagem perante o Supremo. Porque já se sabia que essa operação estava para estourar. Apesar de ter 18 anos de magistratura, pensaram: como podemos prejudicar esse juiz que está dando trabalho? Trabalhava 18 horas por dia na 6ª Vara, por idealismo e porque gostava do que fazia. Fiz com que o mecanismo da delação premiada funcionasse. Isso provocou reações do crime, que chegou a evitar São Paulo, porque aqui não havia mais espaço para atuar. Era o Judiciário atuando com contundência, não em conluio (com a polícia e o Ministério Público). Eu não esperava diferente. Sabia que alguma coisa iria acontecer.
Diário – Mas uma reação tão virulenta assim?
Sanctis – Não (por parte) do Judiciário. Esperava alguma reação por vaidade. Mas como foi, não. Isso me causou surpresa. Espero que esses momentos (como os da Satiagraha) voltem a frutificar, porque houve uma redução sensível em investimentos na segurança pública, em nível federal, e começou-se a trabalhar a legislação para que só os pobres fossem para a prisão. Eu só poderei dizer que o Brasil é desenvolvido quando entrar em uma cadeia e vir não só uma classe econômica e uma etnia.
Diário – Em relação a essas mudanças da legislação, houve aquela apelidada de “súmula Satiagraha”, que proibia o uso de algemas em operações da PF. Qual sua opinião sobre essa alteração?
Sanctis – Foi consequência do trabalho das varas especializadas, especialmente da 6ª Vara (em São Paulo).
Diário – É um retrocesso para o País?
Sanctis – Eu não posso julgar que seja um retrocesso, mas quando se decreta a prisão a pessoa fica no ferro, e a algema é questão de segurança pública. O preso algemado, seja de qual classe for… A algema busca, em primeiro lugar, a segurança do preso. Houve vários casos de presos se suicidando, inclusive no Brasil. E (representa a) segurança do policial que está do lado. Além disso, (serve para) fazer uma distinção de quem é quem. Determinou-se a prisão, determinou-se o ferro, que pode ser dentro ou fora da prisão. Algema é prisão móvel. É uma questão de resguardo. Mas o Supremo entendeu diferente, tenho que respeitar.
Diário – Por que o senhor acha que a PF tirou o delegado Protógenes da condução da Satiagraha?
Sanctis – Não posso comentar isso, é questão interna da instituição. Outros delegados também atuaram na operação com competência. Tanto que o delegado Ricardo Saadi refez todo o trabalho do Protógenes e chegou às mesmíssimas conclusões. Se o Protógenes ficou estigmatizado pelo seu estilo, isso não invalida o trabalho feito. O que ocorreu dentro da Polícia (Federal) talvez tenha sido uma questão de vaidades.
Diário – Quando se tornou desembargador do TRF, o senhor tinha a expectativa de ser nomeado para uma câmara criminal. O fato de acabar em uma câmara previdenciária foi uma retaliação?
Sanctis – Não posso dizer. O que posso afirmar é que iria fazer sessão na segunda-feira, estava com os votos, minha posse era na 6ª Câmara Criminal, e na posse foi anunciado que eu viria para uma câmara previdenciária, sendo que já havia decorrido 48 horas de todos os desembargadores escolherem (as câmaras), e o único que escolheu (a criminal) fui eu, por isso já estava com os votos. Havia telefonado para a presidência, os funcionários disseram que eu iria para o crime. E aí veio a surpresa.
Diário – O livro “Xeque-Mate” (ficção sobre a rotina de um juiz escrita por Sanctis) foi um certo desabafo diante dessas situações?
Sanctis – Eu estava escrevendo um livro jurídico, meu filho chegou e perguntou sobre o que eu estava escrevendo. Ele disse: “Por que você não escreve um livro sobre um juiz?” Aí juntou tudo o que eu estava passando, pensei: “Acho que é bom eu mostrar um juiz humano”. Porque me colocaram em um pedestal de tal forma que me incomodava. Então criei a figura de um juiz humano. Muita gente associa a história comigo. É óbvio que o autor se baseia nos fatos que ele observa, mas que não necessariamente ocorreram com ele. É ficção. Mas tem um pé na minha experiência de bastidor do Judiciário.
Diário – Nesses momentos mais tensos da Satiagraha, o senhor teve o apoio de boa parte da sociedade. Isso compensou, de certo modo, o desgaste?
Sanctis – Compensou, e foi muito importante. Sem ele… Acho que foi fundamental para eu estar aqui hoje. Eu tenho que dizer uma coisa: (na época da operação) fui recomendado pelo setor de comunicação do Tribunal para que fosse à imprensa, para que a população me ouvisse, porque como a coisa estava caminhando corria sério risco na carreira. Houve uma recomendação expressa: “O senhor precisa falar do seu trabalho”, para que as pessoas soubessem quem eu era. Porque parte da imprensa manipulava os fatos, e assim agia como instrumento para destruir o meu trabalho.
Diário – Em relação à fase de investigação da Satiagraha, houve alguma falha que possa ter dado brecha a todo o imbróglio que se sucedeu, como o vazamento da operação para a Andrea Michael, da “Folha”?
Sanctis – Foi uma falha. Mas estamos no campo de uma operação altamente explosiva, que envolvia interesses governamentais altíssimos. É inevitável que uma operação dessas mexa com interesses diversos. Então, por mais que se proteja o sigilo, é difícil mantê-lo. Foram vários problemas. Envolve o interesse jornalístico e o interesse público de uma investigação séria. Não é porque houve uma falha anterior que eu acho que o jornalista deve, em nome do furo, dar sequência a essa falha. O abuso da imprensa se combate com mais liberdade de imprensa. Mas o serviço midiático é público, e por isso deve ter seus limites éticos. Depois disso (vazamento), o trabalho ficou muito mais difícil, e a operação correu sério risco de não acontecer.
Diário – Depois da Operação Satiagraha, o senhor se encontrou pessoalmente com o ministro do STF Gilmar Mendes?
Sanctis – Encontrei uma vez. Eu o respeito como ministro. Ele foi levado a acreditar em fatos que não aconteceram, isso é evidente. Eu lamento que as conclusões de três inquéritos que categoricamente afirmaram que não existiu qualquer grampo (na sala do ministro) não tiveram a mesma repercussão (na mídia).
Diário – Qual seu sentimento hoje sobre o ministro?
Sanctis – Não tenho sentimento nenhum. Ele é um ministro que tem sua forma de agir, e eu tenho a minha.
Diário – Essa relação que o Rubens Valente aponta entre o ministro e o Daniel Dantas lá atrás…
Sanctis – (interrompe). Eu não posso falar sobre isso.
Diário – O senhor considera o Daniel Dantas uma persona non grata?
Sanctis – Não, de forma alguma. Ele é um réu como qualquer outro. Foi tratado sempre com muito respeito. Eu o tratei como trato com qualquer réu, com a lei. Ele mereceu, de minha parte, o mesmíssimo tratamento que dou ao João da Silva. Eu não fiz qualquer distinção. E cada vez que alguém desafia o Estado, tem que merecer do Estado as devidas consequências.
Diário – O que Daniel Dantas representa para o País?
Sanctis – Eu não posso falar.
Diário – Que lição o senhor tirou da Satiagraha?
Sanctis – (pausa) A democracia no Brasil é muito frágil, e anda conforme a conveniência dos interesses de certos grupos econômicos. Nos Estados Unidos, a grande instituição é o Judiciário. Ele é que promove a igualdade. Lá, seja quem for, cometeu falha, vai sofrer sérias consequências. Sem um Judiciário forte, não há democracia.
Diário – Se pudesse voltar no tempo, faria algo diferente na Satiagraha?
Sanctis – Vou falar não só dessa operação, mas do meu trabalho na 6ª Vara Federal. O que eu fiz foi ler a prova, e isso não é tão simples, e nem todo mundo está disposto. Isso vale para todo e qualquer fato. Eu evito ler nomes dos réus. Às vezes, você precisa ler para verificar se há alguma problema de impedimento (do juiz). Mas sou muito distraído. E não me importa quem seja. Importa o fato e a resposta a esse fato. Absolvi muita gente, mas condenei também. Mandei prender gente porque, para mim, certas situações de desafio ao Estado são intoleráveis.
O que foi a Satiagraha:
A Operação Satiagraha (palavra do sânscrito que significa “verdade”) foi desencadeada pela Polícia Federal em 9 de julho de 2008. Foram presos temporariamente, por ordem do então juiz da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, Fausto Martin de Sanctis, o banqueiro Daniel Dantas, dono do Opportunity, o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta (morto em 2009) e o empresário Naji Nahas. Eles eram acusados de desvio de verbas públicas e crimes financeiros. Na casa de Dantas foram apreendidos documentos que comprovariam suposto pagamento de propinas a políticos, juízes e jornalistas, no valor total de R$ 18 milhões. Mas o banqueiro ficaria apenas um dia preso – em 10 de julho, o então presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, concedeu habeas corpus em favor de Dantas. No dia seguinte, Sanctis decretaria novamente a prisão do banqueiro, desta vez preventiva, mas a decisão seria mais uma vez derrubada por Mendes no Supremo. Em 2011, a ação penal decorrente da operação foi anulada pelo Superior Tribunal de Justiça. Os ministros do STJ entenderam que as provas da Satiagraha foram obtidas ilegalmente pois a PF contou com a participação irregular de agentes da Abin. A extinção da ação dispensou Dantas e mais 13 condenados de responderem pelos crimes de formação de quadrilha, gestão fraudulenta, evasão de divisas e lavagem de dinheiro. O Ministério Público recorreu ao STF, que ainda não julgou o caso.
Dines reforça: Veja cometeu crime de imprensa
Jornalista e titular do Observatório da Imprensa, Alberto Dines diz que matéria de capa que aponta regalias a José Dirceu na prisão não é reportagem, "é pura cascata", que mistura "altas doses de rancor" com "velhacaria em oito páginas artificialmente esticadas e marombadas"; segundo ele, a revista cometeu "abuso de poder, invasão da privacidade e, principalmente, um torpe atentado ao pudor e à ética jornalística"; para ele, jogada invadiu a seara da "formação de quadrilha, ao confirmar-se que o autor da peça (o editor Rodrigo Rangel) não entrou na penitenciária e que alguém pagou uma boa grana aos funcionários pelas fotos e as, digamos, 'informações'"
18 de Março de 2014 às 17:21
247 - A capa da última edição da revista Veja foi alvo de mais uma crítica, desta vez por parte do renomado jornalista Alberto Dines. Em artigo publicado no Observatório da Imprensa, ele diz que a publicação da Abril cometeu "abuso de poder, invasão da privacidade e, principalmente, um torpe atentado ao pudor e à ética jornalística" no texto que aponta regalias a José Dirceu na prisão. Matéria tem "altas doses de rancor", acrescenta. Leia abaixo:
Novo surto de vale-tudo
Por Alberto Dines em 18/03/2014 na edição 790
Na tarde de 12 de abril de 2011, em aula da primeira edição do Curso de Pós-Graduação em Jornalismo, da ESPM-SP, Eurípedes Alcântara, diretor de Redação da Veja, na condição de professor-convidado, declarou, para espanto dos 35 alunos presentes: "Tratamos o governo Lula como um governo de exceção". Na capa da última edição do semanário (nº 2365, de 19/3/2014), o jornalista ofereceu trepidante exemplo da sua doutrina.
Para comprovar a ilegalidade das regalias que gozaria o ex-ministro José Dirceu no Complexo da Papuda, Veja cometeu ilegalidade ainda maior. Detentos não podem ser fotografados ou constrangidos, o ato configura abuso de poder, invasão da privacidade e, principalmente, um torpe atentado ao pudor e à ética jornalística. Um bom advogado poderia até incriminar os responsáveis por formação de quadrilha ao confirmar-se que o autor da peça (o editor Rodrigo Rangel) não entrou na penitenciária e que alguém pagou uma boa grana aos funcionários pelas fotos e as, digamos, "informações".
"Exclusivo – José Dirceu, a Vida na Cadeia" não é reportagem, é pura cascata: altas doses de rancor combinadas a igual quantidade de velhacaria em oito páginas artificialmente esticadas e marombadas. As duas únicas fotos de Dirceu (na capa e na abertura), feitas certamente com microcâmera, não comprovam regalia alguma.
Ao contrário: magro, rosto vincado, fortes olheiras, cabelo aparado, de branco como exige o regulamento carcerário, não parece um privilegiado. Se as picanhas, peixadas e hambúrgueres do McDonald's supostamente servidos ao detento foram reais, Dirceu estaria reluzente, redondo, corado. Um preso em regime semiaberto pode frequentar a biblioteca do presídio, não há crime algum.
Agentes provocadores
A grande imprensa desta vez não deu cobertura ao semanário como era habitual. Constrangido, o Estado de S.Paulo foi na direção contrária e já no domingo (16/3) relatava, com chamada na primeira página, as providências das autoridades brasilienses para descobrir os cúmplices do vazamento (ver "Dirceu teria mais regalias na cadeia; DF nega"). Na segunda-feira, na Folha de S.Paulo, Ricardo Melo lavou a alma dos jornalistas que repudiam este jornalismo marrom-escuro (ver "O linchamento de José Dirceu").
O objetivo da cascata não era linchar Dirceu, o que se pretendia era acirrar os ânimos, insuflar indignações contra uma suposta impunidade, alimentar a agenda dos black-blocks (ou green-blocks?).
Os agitadores e agentes provocadores estão excitadíssimos às vésperas dos 50 anos do golpe militar. O violento quebra-quebra na sexta-feira (14/3), na Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp) – o maior do gênero na América Latina – não foi provocado pelos caminhoneiros que passariam a pagar pelo estacionamento. Foi obra de profissionais do ramo da agitação política com a inestimável ajuda da PM, que demorou três horas para chegar ao campo de batalha.
As convocações para atos e passeatas destinadas a homenagear o golpe de 1964 não falam na derrubada de Jango, falam em derrotar o PT. Convém lembrar que a rede Ceagesp é, desde 1997, federalizada, ligada ao Ministério da Agricultura.
Num governo de exceção vale tudo. Também no jornalismo de exceção.
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Depois de três edições e três turmas de valentes profissionais, o Curso de Pós-Graduação em Jornalismo com Ênfase em Direção Editorial, parceria da Editora Abril com a ESPM, foi suspenso. Na véspera do primeiro aniversário da morte de Roberto Civita, está desativada uma de suas mais lindas façanhas no campo da formação profissional. Não merecia.
Foto de Dirceu na Veja desmente “regalias”
"Cerca de oito meses separam a primeira e a segunda fotos de José Dirceu justapostas na montagem fotográfica acima", compara Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania; segundo ele, as "olheiras", "a magreza acentuada" e "o forte abatimento" (...) "contradiz e sepulta a acusação sem provas da revista de que Dirceu estaria recebendo alimentação de boa qualidade"
18 de Março de 2014 às 14:46
247 - A diferença da aparência física de José Dirceu entre julho de 2013 e março de 2014 desmente a farsa sobre "regalias" aos condenados na Ação Penal 470 na Penitenciária da Papuda, afirma Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania. Ele, que esteve com Dirceu "cara a cara há míseros seis meses", diz que as "olheiras", "a magreza acentuada" e "o forte abatimento" mostradas na foto divulgada pela Veja "contradizem a acusação sem provas da revista de que Dirceu estaria recebendo alimentação de boa qualidade".
Leia abaixo seu post sobre o tema:
Foto de Dirceu na Veja desmente farsa sobre "regalias"
Cerca de oito meses separam a primeira e a segunda fotos de José Dirceu justapostas na montagem fotográfica acima. A foto à esquerda foi tirada durante evento do PT de que o ex-ministro participou no ano passado; a foto à direita foi tirada por algum funcionário da penitenciária da Papuda que a revista Veja "convenceu" a cometer uma ilegalidade.
Estive pessoalmente com Dirceu em setembro do ano passado, em uma reunião de amigos que ele promoveu na residência de seu irmão, no bairro de Vila Mariana, em São Paulo, para acompanharem consigo sessão do STF que deliberaria sobre aceitação de embargos infringentes dos réus do julgamento do mensalão.
Logo após a Veja divulgar duas fotos recentíssimas de Dirceu em sua edição desta semana, comentei no Facebook que fiquei assustado com a imagem de alguém com quem estive cara a cara há míseros seis meses. O homem da foto que a Veja acaba de divulgar nem parece a mesma pessoa.
As olheiras, a magreza acentuada, enfim, o forte abatimento de Dirceu que essa foto recente ilustra me chocaram pela deterioração física dele, mas não me surpreenderam. A vida na prisão é muito dura e não precisa ninguém ter experimentado para saber disso.
O que surpreende é o sucesso da grosseira farsa midiático-penal que vem sendo alardeada para todo o país, sobre supostas "regalias" que a direção do presídio da Papuda estaria concedendo ao ex-ministro e a outros petistas condenados pelo julgamento do mensalão.
Chega a ser ridículo ter que escrever este texto. Qualquer pessoa com o mínimo de honestidade intelectual reconhece que a foto divulgada pela Veja contradiz e sepulta a acusação sem provas da revista de que Dirceu estaria recebendo alimentação de boa qualidade, tal como peixadas, feijoadas e até sanduiches do McDonalds, conhecidos pelo alto teor calórico que têm e que faz quem os consome engordar rapidamente.
Mas é óbvio que a imagem quase cadavérica de Dirceu não se deve tão-somente a uma alimentação de má qualidade. Deve-se, também, a sofrimentos diversos que o estão consumindo fisicamente, ainda que, segundo relatam amigos que o têm visitado, seu espírito de luta esteja intacto.
O mais grave nisso tudo nem é a Veja provavelmente ter subornado algum funcionário da Papuda para obter foto de Dirceu, violando, assim, os direitos dele e as leis penais, que protegem os detentos da exploração de imagem. O mais grave é a farsa midiática sobre regalias que jamais foram comprovadas ter o apoio da Vara de Execuções Penais do DF.
A sindicância aberta pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal a fim de descobrir como foi tirada a foto de um detento de um presídio local é importante, mas mais importante ainda será desmascarar farsa tão grosseira que a própria Veja deixou ver ao publicar a imagem de um Dirceu tão deteriorado fisicamente.
O fato de injunções políticas estarem fazendo com que um condenado a regime semiaberto seja mantido em regime fechado por conta de acusação – por supostamente ter usado telefone celular – que está sendo investigada há dois meses sem chegar a conclusão alguma e as acusações visivelmente falsas de que ele desfruta de "regalias", assustam.
Usar o poder de Estado para massacrar inimigos políticos é comum em ditaduras, mas, supostamente, o Brasil vive democracia plena. O que a mídia e a Vara de Execuções Penais do Distrito Federal estão fazendo com Dirceu não é compatível com um país em que impera a democracia. A tortura mental e física que ele está sofrendo faz do Brasil uma ditadura.
Contudo, se pensarmos bem essa situação faz sentido. Após um julgamento farsesco, a execução das penas que esse julgamento impôs não poderia ser conduzida de forma diferente. Para um julgamento de exceção, penas de exceção. E a democracia que se lasque. Afinal, os autores dessas arbitrariedades não entendem a sua importância.
Quem mais matou Dona Cláudia?
A filha de Cláudia Ferreira da Silva, a mulher duas vezes assassinada – a tiros e ao ser arrastada como um farrapo pelo carro da polícia – por policiais militares no Rio , disse que os PMs a “acusaram” de ter dado um copo de café a “um bandido”.
Sejamos honestos: seu brutal assassinato está chamando a atenção do país porque se filmou a queda de seu corpo do carro dos policiais e a cena dantesca de sua segunda morte.
Porque a primeira morte de Cláudia foi ter sido baleada, essencialmente, por ser moradora de uma favela e negra.
Se não era mãe de traficante – como a própria temia fossem confundidos seus filhos – era tia, amiga, prima, parente ou amiga deles.
Devia ser: afinal era negra e favelada. E seus filhos deveriam ser, também eram negros e favelados.
“Todo os dias, eles [ PMs] chegam atirando e depois vão ver quem é. Ela não deixava a gente ficar na rua com medo de acontecer alguma coisa ou de confundirem a gente com traficantes”.
Como a Cláudia, seus filhos, milhares de Cláudias, Cláudios e Claudinhos.
Bandidos ou não, mas sempre, ou quase sempre, negros e favelados.
Quando morava em Santa Teresa, um bairro envolto por favelas nos morros do Rio, conheci um rapaz que sempre estava no ônibus tardio em que eu voltava para casa – o bondinho ainda circulava, mas só até 21 horas – que andava sempre com uma Bíblia na mão.
Um dia, puxei conversa sobre religião e fiquei surpreso de saber que ele não era evangélico.
A Bíblia era só para estabelecer uma mínima dúvida nas muitas ocasiões em que era parado pela PM. para não ser imediatamente tratado como bandido traficante.
Ele, afinal, era também negro e favelado, do Morro dos Prazeres. Logo, também, deveria ser um bandido.
E se em lugar de D. Cláudia, fosse o negrinho da corrente no pescoço quem ficasse pendurado pela roupa, sendo arrastado?
Aí seria “compreensível”, D. Sheherazade?
Escolhi essa foto do enterro de Dona Cláudia pensando em você, Ali Kamel, e no seu “não somos racistas”.
Olhe bem para ela e veja: há apenas um branco, sofrendo do mesmo jeito que os negros.
A dor tem cor? Tem classe? Tem comprovante de renda e endereço?
A dor deles é menor que seria a minha ou a sua, diante da mãe morta?
A barbárie e seu elogio só trazem mais barbárie.
Ou você acha que aqueles policiais se tornaram monstros, já nasceram assim, desprezando a integridade de um ser humano – bandido ou não bandido – ao ponto de o colocarem, mesmo gravemente ferido, baleado, na caçamba de uma caminhonete?
Quem os açulou ao ponto de animalizá-los assim?
Não adianta apenas dizer que eles agiram como monstros – e agiram – sem tocarmos naquilo que os torna monstros – a eles, policiais e aos bandidos .
Quando este Estado teve um governante que não tolerava isso, Kamel, você, a sua Globo, as elites e as Sheherazades de então, vociferaram contra, porque Brizola “não deixava a polícia trabalhar”.
A foto ao lado mostra o que era a PM antes de sua chegada.
Negros e favelados, tratados como convinha tratar negros e favelados, então.
Eu lembro perfeitamente bem como essa história começou: quando dois policiais subiram o Morro do Chapéu Mangueira, no Leme, atirando contra um ladrão de bolsas.
Mataram uma menina de oito anos, sentada à porta de sua casa, no morro, brincando.
Ela, afinal, era negra e favelada.
Boa coisa não ia dar, não é?
O lobo tem as suas razões, sempre.
Ditadura esquadrinhou patrimônio de Brizola e concluiu: ele era honesto
De 18 de fevereiro de 1970 a 22 de abril de 1971, no decorrer de 429 dias, uma comissão criada pela ditadura esquadrinhou exaustivamente o patrimônio do então exilado Leonel de Moura Brizola (1922-2004). Com declarações de Imposto de Renda, extratos de contas bancárias e registros de imóveis urbanos e rurais à mão, a subcomissão gaúcha da Comissão Geral de Investigação (CGI) concluiu que os bens do ex-governador do Rio Grande do Sul eram compatíveis com sua renda. A investigação foi arquivada e, implicitamente, a ditadura chancelou a honestidade de um dos seus mais figadais inimigos.
Em 1964, o ex-governador Brizola era deputado federal pelo governista Partido Trabalhista Brasileiro, mesma agremiação de João Goulart, seu cunhado. Como o presidente, Brizola foi cassado pela ditadura (1964-85) nascida com o golpe de 1º de abril. Ele insistiu na resistência aos golpistas, mas não convenceu Jango. Ficaria no estrangeiro até a anistia, em 1979. Em 1982, elegeu-se governador do Rio de Janeiro, Estado que voltaria a administrar ao triunfar no pleito de 1990.
A apuração sobre o patrimônio de Brizola consta de um processo de 18 páginas, hoje sob guarda do Arquivo Nacional. A revelação histórica é de autoria do repórter Guilherme Amado, no jornal “O Globo”. O fac-símile integral da documentação pode ser lido clicando aqui.
Assinada por um tenente-coronel (provavelmente do Exército; a reprodução não permite ler claramente o nome), a resolução 045/70, de 18 de fevereiro de 1970, decidiu “instaurar, ex-ofício, investigação sumária para apuração de enriquecimento ilícito correspondente” a Leonel Brizola e outros cidadãos.
O relatório de 22 de abril de 1971 trouxe o parecer sustentando que “os ganhos do indiciado poderiam, em princípio, dar os frutos emergentes”.
Em palavras de gente: os salários de Brizola lhe permitiriam ter acumulado uma casa em Porto Alegre (comprada em 1953), uma fazenda em Viamão (em 58), os saldos nas contas bancárias e outros eventuais bens registrados em suas declarações de renda anuais de 1959 a 68 (só não encontraram a de 61).
O relatório não faz menção ao fato de que o patrimônio da família era imensamente maior, devido às propriedades de Neusa Goulart Brizola (1921-93), mulher do investigado e irmã de Jango. A família Goulart, dona de estâncias, era rica.
O arquivamento foi ainda mais eloquente porque a CGI não fazia investigações “sobre” determinada pessoa. No caso dos opositores, fazia “contra”. Depois de deixar o Brasil à força, Brizola montara desde o Uruguai iniciativas mal sucedidas de guerrilha contra a ditadura.
A CGI fora criada em 1968. Seu propósito, como recorda o Arquivo Nacional, era promover “investigações sumárias para o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, inclusive de empregos das respectivas autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista”.
Uma das alegações dos golpistas de 1964 era o combate à corrupção. Poucos políticos foram tão odiados pela ditadura como Leonel Brizola. Conforme a CGI do próprio regime sacramentou, não se tratava de um corrupto.
Inedito - Contra os pulhas, os documentos da ditadura que comprovam a honradez de Brizola
Durante cinco décadas, gerações de pulhas sucederam-se na arte de atacar a honra de Leonel Brizola.
Em metade deste tempo eu fui testemunha desta sanha.
De David Nasser a Rodrigo Constantino – embora o segundo não tenha sequer sob análise microscópica o talento do primeiro, assemelham-se no padrão “reservatório da Cantareira” em matéria de qualidades morais -, alguns poderosos sempre contaram com os que emprestavam suas penas levianas para atacá-lo sem qualquer pudor.
Eram fazendas e fazendas que, quando visitadas, como fez, na Veja, o repórter Marco Damiani, mostravam que eram menos, muito menos, do que viera como herança para o casal que formara com D. Neusa.
Hoje, o blog (excelente) do Mário Magalhães, autor da não menos excelente biografia de Carlos Marighela – “O guerrilheiro que incendiou o mundo” – relata e publica o que os documentos da Comissão de Inquérito formada pelo golpe militar – com todo o poder na mão e todo ódio no coração – pôde apurar sobre irregularidades de alguém que já fora deputado estadual, prefeito de Porto Alegre e Governador do Rio Grande do Sul, além do mandato de deputado federal que lhe foi, então, cassado.
Nada, absolutamente nada.
David Nasser (num gesto que Brizola, quando perguntado se tinha arrependimento, dizia que batera, sim, mas num canalha) levou um belo soco no queixo quando os dois se encontraram em 63, no Aeroporto Santos Dumont.
Mas não é assim que se resolvem as coisas, até porque não haveria munheca suficiente para dar em todos da extensa lista.
A fonte de rebelião
Na hostilidade dos deputados do PMDB ao governo há um impulso maior do que a “insatisfação com o tratamento injusto” dispensado ao partido por Dilma Rousseff. A própria bancada não precisou, porém, de mais do que esse argumento para rebelar-se, porque nele estava implícito o objetivo principal, quando não único, da maioria dos seus integrantes: receber mais nomeações e verbas federais.
Líder e inspirador da bancada, o deputado Eduardo Cunha deu sentido prático à rebelião alinhando poucas mas suficientes recusas a projetos apoiados pelo governo. Para todos os efeitos, esta atitude é um desdobramento da rebelião, e não a sua causa. Mesmo para a bancada, é assim que se explica. Mas não é assim na realidade.
A força por trás da rebelião são as empresas de telefonia. As suas objeções e as do deputado Eduardo Cunha ao projeto do Marco Civil da Internet são idênticas. Incidem sobre as mesmas partes que desejam ver retiradas, umas, e outras modificadas no projeto. Motivo que levou a rebelião a exigir o adiamento da votação e a reabertura das discussões. Contra a posição do governo, que defendeu o projeto aprovado tal como está e tão depressa quanto possível.
A falta do Marco Civil da Internet é um atraso brasileiro. Há inúmeros manifestos por sua aprovação. O deputado e relator Alessandro Molon trabalhou com seriedade e minúcia na formulação final do projeto. Argumenta que as modificações de interesse das empresas de telefonia e defendidas por Eduardo Cunha resultariam na “exclusão digital de milhões de usuários brasileiros da internet, beneficiando só os mais ricos”.
Rebelião do PMDB é pseudônimo de manobra das telefônicas. Mas a esperteza que a propôs não é delas, não.
Eduardo Cunha é um deputado de muita linha. Telefônica, bem entendido
O líder do PMDB, Eduardo Cunha, foi recebido ontem, como deve ser recebido qualquer líder de partido, pelo vice-presidente Michel Temer e pelos ministros da Justiça e das Relações Institucionais.
E não obteve o que queria, como deve acontecer com quem usa a representação parlamentar para advogar interesses privados, não os públicos.
A “liberdade” que Cunha defende para a internet é a liberdade das empresas de telefonia de definirem quem e por quanto terá uma velocidade de tráfego de dados maior pela rede mundial de computadores.
É o direito de ir e vir, cibernético, traduzido da monstruosa forma de fazer uns irem a jato e outros de patinete, dependendo de quanto pague.
Não se está falando de velocidade de conexão ou de capacidade dos servidores que utiliza, mas do direito de trafegar pelas infovias em velocidades “diferenciadas”.
Uma Higiénópolis digital.
Poucas pessoas têm a coragem de dizer isso, na imprensa.
Um delas, como sempre, é Guilherme Araújo, que o faz, hoje, no Blog do Guilherme Araújo.
Há 20 anos no Jornal Nacional
O relato de Fernando Brito sobre “o tiro que acertamos no cu de um mosquito” – no dizer de Leonel Brizola, a improvável vitória judicial que obrigou Cid Moreira a ler o seu direito de resposta contra a TV Globo, há exatos 20 anos – abre um baú de recordações e revelações que não se pode mais deixar fechado.
Aquela foi sem dúvida uma das mais espetaculares façanhas políticas e jornalísticas da qual tive o privilégio de participar – modestamente, é verdade – ao lado de um dos mais competentes e íntegros profissionais de imprensa que conheço. Durante uma boa dúzia de anos vivi a aventura de colaborar com Fernando Brito, como seu fiel escudeiro, na assessoria de imprensa do Brizola, dentro e fora de seus dois governos no Estado do Rio.
Partilhamos lutas e sonhos numa posição da trincheira difícil de se estar, lutando contra inimigos poderosos, tentando romper, mesmo que em pequenas brechas, a muralha de cinismo, hipocrisia e mau jornalismo erguida pela grande imprensa ao longo desses últimos 50 anos para tentar impedir o reencontro do povo brasileiro com a sua história. Na esteira dos anos de chumbo, a mídia e as elites criaram os anos de silêncio, cassando a palavra de líderes como Brizola (lembro de um casuísmo do TSE nas eleições estaduais de 1986 que chegou a proibir a presença dos governadores – leia-se Brizola – na propaganda eleitoral gratuita, quando Darcy Ribeiro disputava o governo fluminense contra Moreira Franco).
Aí entraram os tijolaços e as nossas quixotescas tentativas de buscar pelas vias judiciais os espaços que nos eram negados na mídia. Estas, na maioria das vezes, esbarravam no facciosismo do judiciário, depois de nossas respostas serem solenemente ignoradas dentro das redações. Eu mesmo cumpri algumas vezes o papel – apenas formal – de entregar pessoalmente na redação de O Globo textos que dali iam diretamente para a cesta do lixo, antes que os enviássemos aos tribunais.
Cabia ao Brito compor esses textos, ora ao lado do Brizola, mas muitas vezes a duas mãos apenas. E não só os tijolaços e os pedidos de direito de resposta, mas muitas peças de campanha e manifestações políticas que levavam a assinatura do Chefe. O processo era exatamente como descrito por ele em seu artigo. Uma sintonia perfeita com o estilo discursivo e o pensamento político de Brizola o levava a incorporá-lo. Sem qualquer insinuação metafísica, parecia mesmo ser tomado por ele.
Brito não apenas redigia, com o nosso auxílio, pois nesses momentos preferia discursar, cabendo-nos a tarefa de transcrever, com um ou outro debate sobre algum ponto do texto. Ele o sentia. Gerava-o sofregamente. Experimentava a dramaticidade daquela argumentação empírica, como o próprio Brizola a definia, às vezes até às lágrimas.
Recordo que, às vésperas da eleição presidencial de 1989, naquela que nos parecia, e era, a última grande encruzilhada histórica deste país, ele vomitava um artigo para ser publicado em O Dia na própria data do pleito. Lembro da última frase, que fechava o artigo mais ou mos assim: “Hoje, quando saíres de casa, olha para os olhos de teus filhos, de teus netos, me dê a tua mão e vamos juntos em busca do nosso destino…”. Na sala do Edifício Orly, onde ficava o nosso bunker, nossos olhos marejavam enquanto Brito corria, soluçando, para o banheiro.
Não, ele não era um ghost writer qualquer. Era, na verdade, a única pessoa capaz daquilo. E, a meu ver, por três razões conjugadas: primeira, por seu grande talento de redator; segunda, e mais importante, pela incorporação do pensamento, da identidade e da fidelidade política do próprio Brizola; e, terceira, sem a qual as duas anteriores de nada serviriam, por merecer a confiança absoluta do Chefe. Coisa para bem poucos dos que serviram a Brizola ao longo de sua trajetória.
Vivemos e choramos até hoje os nossos fracassos. Naqueles idos de 89 sentíamos como se fôssemos a última linha de defesa da histórica bandeira política do povo brasileiro – o Trabalhismo. Vi o grande Doutel de Andrade prantear, pouco antes de morrer, repetindo insistentemente: “A nossa geração fracassou!” Vi Darcy, também antes de partir, confessar os seus fracassos: “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.
Muitos de nós, como eu, ficamos em determinado momento desesperançados e ensimesmados. Precisávamos encontrar nossos caminhos, e para jornalistas como eu, Apio Gomes, Osvaldo Maneschy e outros companheiros da mesma trincheira de Fernando Brito, dificilmente eles poderiam passar novamente pelas redações dos grandes jornais. Mas ao olhar para o que ajudamos a fazer há 20 anos, fica a sensação de que aquela fenda na muralha de cinismo continua aberta, minando essa estrutura iníqua até que ela um dia caia de podre.
Os vários arquivos que reproduzem no YouTube o direito de resposta conquistado por Brizola contra a TV Globo em 1994 somam centenas de milhares de exibições e continuam sendo visualizados a cada dia por mais pessoas. E quantas das muitas mentiras da Globo levantadas contra Brizola naquela época ecoam ainda hoje? Foram sepultadas para sempre no limbo da história.
Ao rever a cara de bunda do Cid Moreira passo a pensar menos nos nossos fracassos e mais em uma das grandes imagens do Brizola, o único talvez que nunca admitiu o fracasso – a da lenha guarda-fogo. Ele dizia que nós, trabalhistas, somos como aquela tora mais grossa da fogueira do gaúcho no pampa, que guarda uma centelha de chama no seu interior mesmo quando não se vê. Durante a noite, a fogueira parece ter-se apagado. Mas, pela manhã, o gaúcho se levanta e assopra as cinzas, fazendo rapidamente levantar novamente o fogo necessário para a sua jornada.
A lenha “guarda-fogo”
Recebi ontem à noite, como comentário, o texto escrito e postado em seu blog pelo jornalista, editor e amigo – a quem mais de uma década de ausência física não nos afastam – Luiz Augusto Erthal sobre os bastidores que descrevi aqui do histórico direito de resposta de Leonel Brizola no Jornal Nacional, em 1994.
Passei alguns minutos de constrangimento.
Não publicar, publicar como comentário ou trazer para um post?
Não publicar seria uma sacanagem com meu bom amigo: escreveu para que fosse lido, é obvio. Quase o mesmo publicar como comentário, abaixo de dezenas de outros e lá, numa página atrasada pela voragem publicista minha e de Miguel do Rosário, que atira lá para trás um texto de três dias.
Trazer para um post, como faço, tem certo risco de cabotinismo, embora, no essencial, Erthal trate do tema como eu tratei e é a verdade: não era eu quem escrevia, era ele, do qual eu era um mero intermediário mental.
Mas tem dois aspectos dos quais eu não posso fugir.
O primeiro é enriquece a narrativa factual, porque lhe empresta a emoção, sem a qual os fatos são coisa alguma.
O segundo, é que retira dela a essência: a da lenha “guarda-fogo”.
Aquela que separa os que são vencidos daqueles que são apenas derrotados.
Agora já somos (ele mais do que eu, apesar dos cinco dias mais novo que é) homens de cabelos encanecidos, dos que já podem olhar para trás sem nunca tirar os olhos do que está adiante.
Claudia viveu e morreu como uma daquelas pessoas que ignoramos todos os dias
Vamos esquecer Claudia Ferreira em alguns dias, ou em algumas horas. Aconteceu com o ciclista pobre morto pelo carrão do filho de Eike.
Choramos, esperneamos e rapidamente esquecemos: é assim. Não temos tempo a perder. Somos bacanas e temos muito que fazer.
Por isso devemos refletir sobre o caso com urgência, ou ninguém estará mais minimamente interessado no assunto.
Claudia foi o Brasil que ninguém quer, que ninguém enxerga. É o Brasil dos ignorados, dos desprezados, dos que só vemos quando nos servem pessoalmente na faxina de casa, na mesa de um bar ou em coisa do gênero.
E assim será enquanto não houver uma mudança radical na mente do brasileiro.
Na Escandinávia, ninguém tem o direito de se julgar melhor que alguém apenas porque é mais rico. Um lixeiro lá é respeitado como um integrante vital da sociedade.
É uma cultura oposta à que vigora no Brasil. Por trás do igualitarismo notável dos escandinavos está, como falei tantas vezes no DCM, a Janteloven – as leis de Jante.
Jante é uma cidade fictícia criada por um romancista local décadas atrás, e ali a regra número 1 era exatamente aquela: ninguém é melhor ou pior que ninguém por causa das posses.
No Brasil, os desvalidos não existem. Como disse o marido de Claudia, ela foi tratada como “bicho”.
Alguns se indignaram não com o tratamento dado a Claudia, mas com a comparação, e é verdade: os animais não são tratados assim.
Numa frase infame, Boris Casoy foi flagrado, algum tempo atrás, dizendo que lixeiros não podiam ser felizes. Podem – mas não no Brasil.
Talvez o maior fracasso de Lula e Dilma tenha sido o de não transformar a mente do brasileiro. Continuamos a ver as Claudias, ou os Amarildos, como se fossem nada. Mais precisamente: continuamos a não vê-los.
Só a polícia vê. Em geral, para matar.
O sofrimento, a humilhação, a fome, as privações — a subvida chegou ao fim para Claudia. A pior coisa que pode ocorrer a alguém é nascer, escreveu Schopenhauer. Parece que ele pensava nas Claudias do mundo.
Não acredito em Deus, mas gostaria que ele existisse para proporcionar em algum lugar uma reparação a quem veio apenas para penar, como Claudia.
Mas a história de Claudia não termina nela.
São quatro filhos, e lamentavelmente eles seguirão um caminho muito parecido com o da mãe, porque é assim que são as coisas no Brasil.
Tivesse nascido na Escandinávia, ela estaria andando de bicicleta, sorridente, cabelos tratados, roupas bonitas, dentes impecáveis. O Estado lá cuida de todos, não apenas dos privilegiados.
Seus quatro garotos estariam em boas escolas, falariam línguas, dormiriam em camas acolhedoras e jamais lhes faltaria comida na mesa.
Mas não.
Claudia nasceu no Brasil, para seu infortúnio. E viveu e morreu como uma brasileira invisível, como uma daquelas pessoas, tantas, que a gente ignora todos os dias, todos os dias, e todos os dias.
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