A possível aprovação de uma lei e a chegada de uma certa loja virtual que é líder no mundo estão prestes a alterar o panorama da música brasileira. A lei é a Proposta de Emenda à Constituição 98/2007, conhecida como PEC da Música, que reduz de 32% para zero o imposto para venda de discos, DVDs e faixas digitais de música feita no Brasil. Na semana passada, a PEC teve sua primeira vitória no Congresso, com aprovação em primeiro turno na Câmara dos Deputados e uma indicação de que poderá entrar em vigor nos próximos meses. Já a loja virtual é a iTunes Store, a maior vendedora de músicas do planeta, cuja operação no Brasil começa neste mês, sob sigilo industrial, mas com um garoto propaganda do porte de Roberto Carlos e com o histórico de ter causado impacto em todos os mercados internacionais por que passou. A iTunes Store vai se beneficiar diretamente da PEC. E a música brasileira pode se beneficiar de ambas.
A negociação da Apple, empresa que controla a iTunes Store, com as gravadoras nacionais se fortaleceu há 90 dias. Há um mês, os boatos de que as operações da loja começariam efetivamente ainda neste ano se intensificaram. As perguntas que ficavam no ar e que não podiam ser respondidas por ninguém graças às cláusulas de confidencialidade, porém, eram o "quando" e o "como". O anúncio deve vir nesta quinta-feira, numa entrevista coletiva marcada pela Apple em São Paulo.
— Já trabalhei em mercados que vivenciaram a entrada da iTunes Store, como a Espanha. Ninguém fica imune a ela. O Brasil terá a chance de provar que seu consumidor pode e deseja ouvir música pagando por ela — afirma Marcelo Castello Branco, ex-presidente da Universal e da EMI. — Sobre as estratégias que a Apple vai utilizar, ainda é difícil arriscar alguma coisa. A iTunes gosta da aura de surpresa.
O principal trunfo da Apple para o lançamento de sua loja virtual será Roberto Carlos, muito por o Rei nunca ter autorizado que suas músicas fossem digitalizadas e também pelo fato de o Rei ser o Rei. A lógica é semelhante à campanha de marketing feita em 2010 pela empresa com a chegada do catálogo dos Beatles à iTunes Store. Segundo integrantes da indústria ouvidos pelo GLOBO, o acordo com Roberto Carlos prevê o lançamento de suas músicas em etapas, divididas por períodos da carreira do cantor. No primeiro momento, serão vendidos os discos do Rei da década de 1960, com exceção do primeiro, "Louco por você", que nunca teve relançamento oficial em CD. Assim, estarão na leva inicial: "Splish splash" (1963), "É proibido fumar" (1964), "Roberto Carlos canta para a juventude" (1965), "Jovem Guarda" (1965), "Roberto Carlos" (1966), "Roberto Carlos em ritmo de aventura" (1967), "O inimitável" (1968) e "Roberto Carlos" (1969). A partir dali, os outros trabalhos do Rei chegarão à loja virtual em 2012, progressivamente.
— Num primeiro momento, o usuário da iTunes Store deve vir mais das classes A e B, proprietárias de iPhones — diz Felippe Llerena, diretor da iMusica, empresa de distribuição de conteúdo digital que tem contratos com a iTunes Store. — Mas hoje o consumo digital é basicamente feito pelas classes C e D, pelas compras através dos serviços de operadoras de celulares. Com a iTunes Store, o leque de ofertas será aberto a diferentes camadas da população. O consumo vai aumentar, solidificando a indústria.
Outra dúvida sobre a chegada da iTunes Store é o preço das músicas. O padrão da Apple no exterior é tentar manter a média dos EUA, de US$ 0,99 por faixa, mas as gravadoras brasileiras fizeram pressão para que o valor fosse um pouco maior. Fala-se, então, que o meio termo encontrado foi de R$ 1,99. Neste início, as vendas só serão possíveis com o uso de um cartão de crédito válido internacionalmente, mas por volta de março as operações serão abertas a cartões nacionais. Diferentemente de outros sistemas existentes no país, como o Sonora e o recém-lançado Oi Rdio, a iTunes Store não permite uma assinatura mensal que dê acesso a todas as músicas: na loja da Apple, os produtos são comprados, baixados para o computador, e podem ser utilizados em até cinco aparelhos autorizados pelo usuário.
— A chegada da iTunes Store e a possível aprovação da PEC da Música casam perfeitamente — diz Carlos de Andrade, diretor da gravadora Visom Digital e ex-presidente da Associação Brasileira de Música Independente (ABMI). — Quando a PEC for aprovada, você poderá ver a diferença entre o preço da música brasileira e da estrangeira. Isso vai chamar a atenção do comprador. Ele vai comprar mais música. A pior maldade que fizeram com o disco no Brasil não foi a pirataria. Foi o questionamento quanto ao valor do conteúdo. As pessoas começaram a dizer que era absurdo pagar R$ 20 ou R$ 30 num disco se um CD virgem custa R$ 0,70. Eles se esquecem de quanto foi gasto para se gravar e divulgar aquele disco.
Portanto, a aprovação da PEC em primeiro turno na Câmara foi comemorada como um incentivo para a recuperação do mercado fonográfico brasileiro. A própria Apple demorou a trazer a iTunes Store ao Brasil por receio de nossa realidade tributária: hoje, paga-se cerca de 32% de impostos (ICMS, PIS/Cofins etc.) na venda de música no país. A PEC, se aprovada, derrubaria a tributação para zero no caso de música produzida por brasileiros. O projeto chegou ao Congresso em 2007, por autoria do deputado Otavio Leite (PSDB-RJ) e, desde então, artistas e empresários têm ido a Brasília convencer os parlamentares sobre sua importância. Apenas na semana passada, o texto chegou à votação na Câmara, com um resultado emblemático: 395 votos favoráveis, 21 contrários e quatro abstenções. A PEC, agora, terá um segundo turno na Câmara, na próxima terça, e depois seguirá para o Senado. A expectativa é que ela já entre em vigor no primeiro semestre de 2012.
— A PEC nos dá uma possibilidade de sobrevivência — afirma o compositor Roberto Menescal. — Desde o primeiro dia em que compareci à reunião da ABMI, eu me incomodava com o termo "independente". Hoje, do jeito que está estabelecido o mercado, nós somos mais dependentes do que qualquer um. Só com a PEC poderemos ser independentes de verdade.
A urgência da PEC, para a classe musical brasileira, representa a recuperação de um negócio que perdeu fôlego nos últimos dez anos por dois fatores. O primeiro, e mais óbvio, foi a pirataria e os downloads sem autorização de músicas na internet. Mas não só. Havia, no Brasil, um programa chamado Disco é Cultura, que permitia às gravadoras investir em artistas nacionais o ICMS devido pelos discos internacionais. O Disco é Cultura foi criado em 1967 e foi responsável por fazer com que a música brasileira chegasse a uma fatia de 75% nas vendas.
Só que, em 2000, a isenção do ICMS foi alterada — apenas o estado do Amazonas manteve o benefício. Fábricas de discos migraram para Manaus, para se aproveitar ainda do desconto de IPI dado pela Zona Franca. Vender discos a partir de outros estados, então, passou a ser praticamente inviável.
— Criou-se uma distorção tributária, em que o pequeno passou a pagar mais imposto do que o grande por não conseguir ser distribuído a partir de Manaus — afirma Luciana Pegorer, presidente da ABMI e sócia da Delira Música. — A PEC não surgiu por causa da pirataria. Não se combate roubo com preço. Nosso foco é restabelecer a circulação dos discos, dando a eles seu valor real. Há dez anos, tínhamos 2 mil pontos saudáveis de venda de discos no Brasil. Hoje, são de 200 a 300. Com a PEC, pode-se esperar uma queda no preço, mas o principal é que as empresas vão recuperar fôlego para seu fluxo de produção.
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