A propósito do debate aberto em face do trâmite legislativo da proposta denominada ‘Estatuto das Famílias’, apresenta o IBDFAM o seguinte pronunciamento:
O mundo viu nas últimas décadas as profundas alterações pelas quais passou a sociedade contemporânea. No Brasil, especificamente, mais liberdade, mais garantia de direitos, mais aceitação da diferença e dos diferentes. E o mais importante de tudo, o afeto sendo objetivamente reconhecido como norteador das decisões nos Tribunais do mais humano dos Direitos: o Direito das Famílias, antes marcado pela valorização da família patriarcal, com consequente exclusão dos interesses dos demais membros da família, e a prevalência do patrimônio ao invés das relações, e hoje, a busca permanente pela realização das pessoas.
Defender a família corresponde à proteção das mais diversas formas jurídicas de expressão do afeto, com liberdade e responsabilidade. O Estatuto das Famílias veio para corrigir a distância entre a realidade da vida e as normas. É o maior projeto de lei já criado para beneficiar todas as formas de família, e foi apresentado no Senado Federal neste mês pela Senadora Lídice da Mata (PSB-BA). A legislação atual está ultrapassada e defasada em relação à realidade da família que, hoje, deixou de ser essencialmente um núcleo econômico para dar lugar à livre manifestação do afeto. A apresentação do Estatuto das Famílias no Senado é um modo de debater, alterar e ampliar a proposta original.
O projeto é de autoria do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), instituição técnico científica sem fins lucrativos fundada há 16 anos e reconhecida pelo Ministério da Justiça como entidade de utilidade pública federal. Reúne milhares de incansáveis especialistas, profissionais que lutam para atender as demandas da sociedade. Diante dos novos desafios, são previstas novas expressões das relações nas famílias, como, por exemplo, nos seguintes cenários: uma família movida durante anos pelo afeto, pelo companheirismo, mas desprovida de laços biológicos ou documentais, como é caso dos filhos do coração. Ou um filho que nunca recebeu afeto. O que o IBDFAM defende são os direitos de todas as famílias, independentemente de sua composição. Matrimonial, extramatrimonial, plural: eis o retrato das famílias nos dias de hoje. Essa nova fotografia deve ser captada pela lei. O Estatuto das Famílias tem esse objetivo, corrigir enganos, exclusões, injustiças, desrespeitos e a falta de responsabilização das pessoas pelos seus atos.
Para as novas famílias se propõe uma nova lei, atenta à força construtiva dos fatos e à valorização das famílias como refúgio do afeto, imprescindível à felicidade e à formação sadia da personalidade.
O Projeto de Lei reúne as principais demandas das famílias brasileiras, como exemplos, a inclusão da paternidade socioafetiva, a tese do abandono afetivo, alienação parental e as famílias recompostas, alguns dos avanços que o Instituto propõe inserir no ordenamento jurídico brasileiro, após a tramitação da proposta no Senado e na Câmara.
O texto originário foi elaborado no primeiro semestre de 2007 a partir de grandes eixos temáticos aprovados em congresso nacional da entidade, que, por sua vez, resultaram da consolidação de estudos voltados à modernização do direito das famílias brasileiras, de acordo com as transformações sociais nestas, ocorridas nas últimas décadas, particularmente após o advento da Constituição de 1988.
O anteprojeto foi perfilhado pelo deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA), que o submeteu à Câmara dos Deputados mediante o Projeto de Lei 2.285/2007. Na Comissão de Família e Seguridade Social, o projeto foi aprovado, porém com acréscimos e supressões, que desfiguraram ou suprimiram algumas de suas partes essenciais, afetando-lhe, notadamente, o modelo adotado de reconhecimento jurídico amplo das entidades familiares existentes em nossa sociedade. Essas restrições, em desacordo com as normas constitucionais, refletiram os interesses de grupos tradicionalistas e religiosos, contrários, principalmente, à tutela jurídica das uniões homoafetivas. Com tal comprometimento em suas finalidades, o projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados. Apesar disso, deputados representantes desses grupos recorreram ao Plenário, em 2011, com intuito de impedir sua aprovação final.
Apesar dos óbices criados para aprovação do Estatuto das Famílias, várias e importantes leis entraram em vigor, desde 2007, coincidentes com temas nele versados ou disciplinando matérias novas. Entre as mais importantes, podemos indicar: a) a Lei 11.698, de 2008, que instituiu a convivência compartilhada; b) a Lei 11.804, de 2008, que introduziu o direito aos alimentos gravídicos atribuídos à gestante; c) a Lei 11.924, de 2009, que, mudando a lei de registros públicos, autoriza o enteado a acrescentar o sobrenome do padrasto ou madrasta, ampliando o reconhecimento da família recomposta; d) a Lei 12.004, de 2009, que disciplina o efeito da recusa ao exame de DNA, na investigação da paternidade; e) a Lei 12.010, de 2009, que alterou inteiramente a sistemática da adoção, além de introduzir o direito ao conhecimento da origem genética sem efeitos de parentesco e o consentimento da gestante para entrega da criança para adoção; f) a Lei 12.013, de 2009, que, mudando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ampliou para o genitor separado e não guardião o direito de receber informações sobre a vida escolar de seu filho; g) a Lei 12.036, de 2009, que modifica a Lei de Introdução para melhor recepcionar o divórcio realizado no estrangeiro; h) a Lei 12.133, de 2009, que suprimiu a intervenção do juiz para a habilitação ao casamento; i) Lei 12.318, de 2010, que disciplinou a denominada alienação parental. Essa fragmentação legislativa demonstra a insuficiência do Código Civil de 2002 para lidar com a complexidade atual das relações de família.
A mais importante alteração legislativa após 1988, com grande impacto no direito de família brasileiro foi a Emenda Constitucional 66/2010, promulgada pelo Congresso Nacional, que deu nova redação ao parágrafo 6º do art. 226 da Constituição Federal, suprimindo a separação judicial e o requisito de tempo para realização do divórcio. A entrada em vigor da Emenda implicou total reformulação do projeto do Estatuto das Famílias, para dele suprimir a regulação da separação judicial ou extrajudicial e de seus efeitos, além de sistematizar as matérias relativas ao divórcio, à separação de fato e à separação de corpos.
Por fim, mas não menos importante, o STF, no julgamento da ADI 4.277, em 2011, reconheceu explicitamente a união homoafetiva como entidade familiar, atribuindo-lhe os mesmos efeitos da união estável heterossexual, com efeito vinculante, encerrando a controvérsia sobre sua fundamentação constitucional. Evocando os mesmos princípios constitucionais utilizados pelo STF na ADI 4.277, o STJ decidiu (REsp 1.183.378), igualmente, pela legalidade e constitucionalidade do casamento direto de casais homossexuais e não apenas por conversão da união estável. Nesse mesmo sentido, o CNJ editou a Resolução 175, de 2013, determinando que os oficiais de registro de casamento recebam as habilitações para casamento entre pessoas do mesmo sexo. Essa virada de Copérnico revelou a natureza puramente ideológica e preconceituosa dos grupos tradicionalistas que rejeitaram a inclusão no projeto do Estatuto das Famílias dessas uniões.
Essas são razões suficientes para recomendar ao IBDFAM o abandono do projeto inicial e a reformulação do Estatuto das Famílias, o que foi feito, após consultas aos especialistas e discussões aprofundadas em comissão de juristas, especialmente convocada. Esse novo texto atende, também, as sugestões recebidas após o início de sua tramitação legislativa.
O Estatuto das Famílias não é um código legal monotemático. Corresponde, muito mais, ao modelo legal plural dos denominados microssistemas jurídicos. Sua principal característica é a conjugação, no mesmo diploma legislativo, de normas de direito material e normas específicas de direito processual, além de normas de procedimentos exclusivos, como a habilitação para o casamento.
A doutrina jurídica contemporânea das relações de família tem salientado a inadequação de sua permanência no Código Civil geral. Não mais se aceita que relações existenciais estejam submetidas à mesma lógica das relações patrimoniais, que são predominantes na legislação civil, ainda que temperadas pelo esforço de algumas escolas doutrinárias no sentido de orientar as segundas à realização da dignidade da pessoa humana. Conceitos e categorias gerais da dogmática civil, cujos paradigmas são as relações patrimoniais e econômicas, são dificilmente ambientadas às relações existenciais, com evidente prejuízo para estas. Não podem ser tratadas no mesmo plano, por exemplo, as relações havidas entre proprietário e possuidor e entre pais e filhos.
O universo existencial onde são plasmadas as relações de família aponta para conceitos e categorias que se distanciaram, fortemente, das que se empregam nas relações civis em geral e da própria história do direito de família. O novo projeto do Estatuto das Famílias não procurou soluções que se constroem em outros sistemas jurídicos, mas na realidade brasileira, tal como se apresenta no século XXI. Assim, converte em normas claras o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial bem sucedido da socioafetividade na filiação, que relativizou a tradição hegemônica da consanguinidade legítima, uma vez que a filiação consanguínea extramatrimonial é de recente reconhecimento jurídico. O direito à convivência substitui o ultrapassado modelo de guarda exclusiva e de direito de visitas, iluminado pelo princípio do melhor interesse do filho. Do mesmo modo, sepultam-se definitivamente os resquícios do pátrio poder — atenuado pelo poder familiar do Código Civil — em prol da autoridade parental, que não é poder, mas sim complexo de direitos e deveres no interesse dos filhos.
O novo projeto do Estatuto das Famílias ingressa no Senado Federal, agora com a iniciativa legislativa da Senadora Lícide da Mata, na boa companhia do amadurecimento da sociedade brasileira, da doutrina jurídica, das recentes leis e decisões judiciais, retomando-se o esforço de propiciar ao Brasil uma lei ordinária que honre os valores sociais vertidos nos avançados e generosos princípios de nossa Constituição, para a adequada regulação das relações familiares, em nosso tempo.
O IBDFAM aplaude e conclama ao debate, mesmo quando a crítica à proposta contenha, no falso vigor da vanguarda do atraso, uma leitura propositadamente equivocada e distorcida; repele, apenas, a má fé hermenêutica. Propõe, por isso, um diálogo construtivo que não seja, no Brasil de hoje, como escreveu José Saramago, um ensaio sobre a cegueira. Jogar luz sobre os novos direitos e deveres das famílias é o propósito que anima o IBDFAM.
Em Araxá, durante o IX Congresso Brasileiro de Direito de Família, encerrado na última sexta-feira, dia 22 de novembro de 2013, assinam pela diretoria do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM):
Rodrigo da Cunha Pereira
Maria Berenice Dias
Eliene Bastos
Giselda Hironaka
Giselle Câmara Groeninga
Luis Edson Fachin
Paulo Lôbo
Rolf Madaleno
Zeno Veloso