Desde o regresso da democracia no Brasil, a partir da Constituição de 1988, é comum assistirmos atores políticos e seus respectivos partidos acusando a imprensa de estar a serviço da oposição política daquele momento. Foi assim em todos os governos. Diante das inúmeras revelações das mazelas do Estado, em vez de seus representantes prestarem esclarecimentos à sociedade ou buscar uma correção de rumo, acusa-se a imprensa de ser golpista e de estar a serviço de fins inconfessáveis.
Como disse, todos os recentes governos assim agiram nos últimos anos, mas não há como destacar a postura reiterada daqueles que ocupam três mandatos no governo federal. Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência do Brasil em 2002, de lá para cá passaram-se cerca de 12 anos de permanência do Partido dos Trabalhadores no poder, mantendo um discurso absolutamente idêntico durante momentos de crise.
No ano de 2005, no início do que até então se entendia como o maior escândalo da República brasileira, o mensalão, a imprensa fazia cobertura jornalística do assunto, publicando diuturnamente manchetes e informações sobre os descalabros que a sociedade, atônita, presenciava. Cumpre ressaltar que, após as investigações e a decisão da Corte Suprema do Brasil, alguns agentes políticos ainda negam peremptoriamente a existência desse esquema de corrupção.
Como dizia, a imprensa fazia cobertura jornalística dos fatos, que a cada dia pululavam com novas circunstâncias, novas declarações, novos envolvidos. Qual seria o papel da imprensa senão a cobertura crítica desses acontecimentos? Pois bem, diante de todo o material jornalístico desenvolvido pela imprensa brasileira, inúmeros políticos envolvidos nas investigações ingressaram com ações contra a imprensa, acusando-a de forjar dados e perseguir o governo federal, exercitando o papel de oposição.
Dentre os autores dessas demandas está a agremiação política PT, que entendeu por bem buscar no Poder Judiciário tutela jurisdicional contra determinado veículo de imprensa, a fim de que reparasse a perseguição que entendia sofrer, bem como buscava, naquele momento, fazer com que aquele veículo se calasse e nada mais divulgasse a respeito daqueles fatos.
A Justiça paulista, na oportunidade, afastou por completo a pretensão do partido, declarando, com propriedade, que “pode-se discordar ou concordar com os textos, fatos, tom das matérias, temperaturas da crítica e chamadas de capa, mas inegavelmente todas elas se revestem de inegável interesse público” (AP 535.323.4/5-00, 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, v.u., Des. Francisco Loureiro).
Passados cerca de 10 anos do início das investigações do chamado mensalão, eis que outro escândalo, de dimensões bem maiores, surge no horizonte da república, tendo como protagonista o mesmo partido que há anos ocupa, de forma legítima, o posto mais alto do sistema presidencialista brasileiro. E com o escândalo, novamente a ideia de responsabilizar a imprensa, chamando-a de golpista e atribuindo a ela a responsabilidade de uma crise política, de erros cometidos no equilíbrio das contas públicas, do envolvimento de políticos — que até então dispunham de credibilidade perante a sociedade — investigados e denunciados pelo Ministério Público.
No V Congresso do Partido dos Trabalhadores, a maior liderança do partido, que tem voz nos fóruns internacionais sobre democracia, debochou das inúmeras demissões de jornalistas, como se fossem adversários políticos, argumentando que teriam como causa o desinteresse da sociedade pelas mentiras produzidas pela imprensa. Em outros tempos, declarou que a imprensa é um mal à democracia. No recente programa eleitoral de seu partido, asseverou que a imprensa criminaliza o partido.
O espaço aqui não é para criar um contraditório e demonstrar que, de fato, o partido tem suas principais lideranças envolvidas em crimes, mas sim que é dever da imprensa realizar cobertura jornalística de fatos de interesse da sociedade. Se tais fatos acabam por, recorrentemente, afetar os interesses do governo, não é a imprensa a responsável pela criação deles. A imprensa noticia o que acontece.
Também é bem natural que o noticiário se ocupe, em quase sua totalidade, dos escândalos — públicos — desses últimos anos. Não nos parece razoável que desvios de dinheiro, demissões de ministros, prisão de políticos, governos ineficientes e promessas impossíveis possam passar à margem do noticiário. Ignorar tais fatos — aí sim — constituiria violação ao dever de informação à sociedade de assunto de seu interesse, conforme previsão expressa no artigo 5º, XIV, da Constituição Federal.
É verdade que, se linhas ideológicas existem nas redações dos veículos de comunicação, melhor que sejam reveladas. Nem por isso — aliás, bem longe disso — as matérias veiculadas com eventual linha ideológica ou política são, por si sós, ilícitas. Não é a isenção de quem elabora um texto, bem como a quantidade de notícias a respeito de determinado político ou partido, que qualifica o material jornalístico como lícito ou ilícito, mas sim o interesse público e a verdade revelada.
Aliás, sobre o argumento de que “só falam de mim”, quando utilizado nos autos do processo acima referido, foi plenamente provado o contrário, tendo o acórdão feito merecida referência a isso:
“A Editora Abril, que faz circular a revista semanal Veja, ao fazer a juntada de inúmeras capas de periódicos anteriores (inclusive das concorrentes Época e Isto É), provou que a exposição de partidos políticos representativos nas manchetes não ocorre por opções de critérios pessoais e políticos dos redatores, mas, sim, porque caracterizam fatores sociais que reclamam chamadas ao conhecimento. Ficou provado que isso se deu no tempo do governo de Fernando Collor e no de FHC, do PSDB, revelando a falta de prova da denúncia do partido sobre o sentido predatório dirigido para escarnecer essa ou outra entidade de políticos.”
Absolutamente natural que a imprensa fale do exercício do governo federal em maior quantidade, pois, como ensina Duane Bradley (A Imprensa: Sua Importância na Democracia, tradução de Pinheiro de Lemos, Ed. O Cruzeiro, RJ, 1966, p. 76), “o governo é uma das maiores fontes de notícias que interessam ou devem interessar a todos os cidadãos”.
Recentemente, os noticiários deram conta de que novamente lideranças do governo avançam contra a imprensa no Judiciário por causa da cobertura jornalística que se faz neste novo momento de crise. O papel da imprensa neste mais novo retumbante escândalo tem sido fiel ao normativo constitucional, mesmo que, por algumas vezes — ou mesmo que em todas as vezes —, tenha se valido de uma verve exaltada e ácida, o que, como já declarado pelo Supremo Tribunal Federal, não constitui crime ou qualquer ato ilícito, menos ainda quando o objeto da notícia crítica é uma autoridade pública:
“O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado.” (Min. Carlos Ayres Brito, j. 30.04.2011)
Portanto, a julgar pelas notícias que ocupam as Redações de jornais, revistas, rádio e televisão, que divulgam a cada dia desvios bilionários de dinheiro, delações homologadas, tentadas e prometidas, detenções, envolvimento de políticos de diversos partidos e, sobretudo, aliados ao governo federal, não é a imprensa um mal à democracia, tampouco é ela quem avacalha a política, como Lula disse em certa ocasião.
Ao olhar o cenário político atual, percebe-se bem quem faz mal à democracia e avacalha a política, e, nessa perspectiva, melhor nos filiarmos ao entendimento de Millôr: “a imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”.
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