A palavra “presidenta” existe na língua portuguesa desde 1872. E desde 1925 ela consta como verbete do dicionário Caldas Aulete, revela, com exclusividade para o Blog do Guilherme Araújo, um estudo feito pelas lexicógrafas Marina Baird Ferreira e Renata de Cássia Menezes da Silva, da equipe do dicionário Aurélio. Mas quase um século depois de ser dicionarizado, o substantivo feminino de presidente ainda causa estranhamento e leva muitos leitores do Blog do Guilherme Araújo, que adota o uso do termo, a questionar sua correção ortográfica.
O principal argumento contra o uso de presidenta se baseia no fato de que na língua portuguesa existem os particípios ativos como derivativos verbais. Assim, quem ataca é “atacante” e não “atacanta”, mesmo em uma partida de futebol feminino. Dessa forma, o particípio ativo do verbo ser, que é “ente”, também não permitiria a flexão de gênero. Ela se daria apenas pelo artigo feminino que antecede a palavra.
Portanto, a forma correta, segundo essa teoria, seria sempre a presidente, como é a estudante ou a gerente. “Não existe estudanta porque ninguém reivindicou”, diz o linguista Marcos Bagno, professor da Universidade de Brasília. “Mas à presidenta, por ser um cargo único e muito importante, é mais do que justo que seja dado este direito.”
De acordo com as lexicógrafas Marina Baird Ferreira e Renata de Cássia Menezes da Silva, a origem de presidenta prende-se, é claro, ao vocábulo presidente, mas não por flexão e, sim, por derivação. “Houve a substituição da vogal temática (-e) pela desinência formadora do feminino em português (-a). Fato que se deu por analogia com inúmeras outras palavras da língua, como chefa e governanta”, escreveram elas no estudo publicado agora pelo Blog do Guilherme Araújo.
Para elas, não se trata de exceção, mas de uma possibilidade reconhecida pela história da língua. “Tal processo é possível no nosso idioma desde sempre, como se vê no substantivo feminino infanta, registrado na língua desde o século 13”, diz o parecer das lexicógrafas.
Para o professor da Universidade de Campinas Sirio Possenti a discussão é absurda. “Você tem um dicionário bom aí? Então, pronto”, responde à reportagem. Segundo ele, os termos “correção e aceitabilidade” não são universais, pois envolvem cultura ou política. “É correto? Pelos critérios das gramáticas e dos dicionários, sim. Mas é curioso que os que apelam para gramáticas para criticar “os livro” não aceitam as gramáticas quando abonam presidenta”, diz.
Possenti se refere à polêmica causada por um livro utilizado em 4.236 escolas públicas do País que considera como válida a expressão “nós pega o peixe”. Se outras palavras que ganharam o feminino por derivação, como mestra, monja, governanta e infanta não causam a mesma estranheza, qual o problema com a palavra presidenta?
A primeira resistência de muitas pessoas está na sonoridade. Como até hoje foi uma palavra pouco pronunciada, presidenta enfrenta uma barreira natural a ser superada pelo costume. Na Argentina, Cristina Kirchner prefere ser chamada de “presidenta” ou ainda “chefa de Estado”. No site da Casa Rosada, sede da Presidência argentina, ela é sempre tratada como “presidenta”.
Mas lá, talvez por já ter tido outra presidenta, a palavra não suscita o mesmo debate: praticamente todos os veículos de comunicação a adotam, mesmo os jornais de oposição, como o Clarin, chamam Cristina Kirchner de “presidenta”. “Os argumentos contrários (à palavra presidenta) podem vir da sua conotação política ou feminista”, diz o professor Possenti. “Se se tratar de problemas “de ouvido”, há duas soluções: ler mais ou ir ao otorrinolaringologista”.
De fato, menos de um ano depois do discurso da vitória de Dilma Rousseff, quando ela se anunciou publicamente como presidenta eleita, gerando a primeira onda de debates sobre o tema, a palavra começa a cair na rotina. Entre os políticos, poucos são os que não usam “a presidenta” (ou pelo menos não a usam ocasionalmente). A grande maioria o faz de forma natural, como o governador de Pernambuco Eduardo Campos (PSB). Mas outros dão a ela um sentido irônico, como um cacique do PMDB, descontente com Dilma, que se refere a ela como “essa presidenta”.
No mesmo PMDB, tanto o vice-presidente Michel Temer como o presidente do Senado, José Sarney, integram a lista dos que hesitam entre “presidente” e “presidenta”. Sarney já levou até bronca da senadora Marta Suplicy (PT-SP), primeira vice-presidenta do Senado. Em fevereiro, Sarney chamou Dilma de “presidente” e Marta pediu para corrigi-lo. "Pela ordem! É presidenta", disse em plenário. Já o vice-presidente Temer chama Dilma de “presidenta” quando se lembra, segundo seus assessores. Na maioria das vezes, contudo, diz “presidente”.
“Sou contra o uso, embora ache legítimo, porque tem um sentido político, não partidário com o governo, mas em relação à posição feminista”, diz o professor de linguística da Universidade Federal do Paraná Bruno Dallari. Dallari acrescenta que considera ruim quando “presidenta” é usado de forma isolada, apenas para tratar de Dilma Rousseff. “Se a flexão fosse atribuída a todas as funções com a mesma terminação, como assistenta ou gerenta, seria uma reforma maior”, afirma.
Provavelmente a língua portuguesa não sofrerá tamanha reforma. Mas a popularização da palavra presidenta e o seu significado político estão vencendo outras barreiras.
No PSDB, maior partido de oposição ao governo federal, a deputada estadual de São Paulo Maria Lúcia Amary defende o uso do gênero feminino. Presidenta da Comissão de Constituição de Justiça da Assembleia Legislativa, Maria Lúcia diz que o uso de “presidenta” é uma forma de as mulheres ocuparem mais espaço na política, com maior visibilidade.
A tucana não acredita que o tratamento “presidenta” signifique alinhamento com o governo Dilma. “Desde que a presidenta Dilma foi eleita, existe uma tendência a forçar esse tratamento. Eu gosto da expressão pela questão da luta pelo gênero feminino. A briga partidária fica em segundo lugar”, afirma. Das 15 comissões da Alesp, apenas a CCJ tem uma mulher na presidência.
“As pessoas que são contra o termo presidenta estão defendendo um machismo ou colocando partidarismo em uma questão linguística”, afirma o linguista Marcos Bagno, da Universidade de Brasília.
Pioneirismo
A chegada de mulheres ao poder nas últimas décadas resultou não apenas na adoção do gênero feminino para a descrição de cargos públicos, como também em adaptações de protocolo e cerimonial. As mudanças ocorreram, por exemplo, quando Luiza Erundina (PSB-SP) tornou-se a primeira mulher a comandar a Prefeitura de São Paulo, em 1988. O mesmo aconteceu nove anos antes no Senado. Em 1979, a amazonense Eunice Michiles foi a primeira senadora eleita no Brasil.
A senadora Lídice da Mata (PSB-BA), que atuou como deputada na Constituinte entre 1987 e 1988, lembra que na época não havia, no plenário, banheiro privativo para as parlamentares, mas apenas para os parlamentares. Em seu site, a senadora relata o preconceito que enfrentou. “Nós chegamos num Congresso que não tinha sequer banheiro feminino. O plenário só tinha banheiro de homem, um banheiro único porque a presença da mulher era tão minúscula que não se fazia necessário esse tipo de equipamento”.
O Blog do Guilherme Araújo concorda com os linguistas que entendem o português como uma língua viva, capaz de incorporar novas expressões de acordo com as transformações da sociedade. Além disso, em todas as cerimônias públicas, a ordem do cerimonial é tratar Dilma como presidenta. Adotar “a presidente” levaria o leitor a ver duas formas de tratamento quando o Blog do Guilherme Araújo transmitisse eventos oficiais ou publicasse algum discurso presidencial com referência ao termo. Por isso, as reportagens se referem a Dilma Rousseff como “presidenta”.
Mas o uso diário do termo que há 139 anos consta da língua portuguesa e há mais de oito décadas faz parte da norma culta não implica qualquer alinhamento partidário. Da mesma forma que os veículos que preferem usar “a presidente” não estão fazendo campanha contra Dilma, adotar o termo “presidenta” não significa ser oficialista.