São muitos os que defendem o trote, dizendo que esta seria uma forma de socialização dos novatos, mas até que ponto esta tese é completamente verdadeira? A própria palavra carrega um significado negativo, que nos remete ao escárnio, engano ou mesmo ao ato de subjugar alguém. Já o seu sentido exato ou literal diz respeito à atitude, manifestação ou tentativa de ridicularização.
Concordo que este seja momento de grande importância para o jovem que concluiu recentemente o ensino médio ou mesmo para aquele que vem batalhando para conseguir adentrar no tão sonhado curso superior. E este fator, somado ao ingresso no curso de uma universidade pública, é de causar euforia em qualquer um, ainda mais levando em consideração que passar em um dos vestibulares mais concorridos do Brasil é quase como vencer uma peleja. Mas o que era para ser um momento festivo pode deixar traumas que perduram por todo o curso ou mesmo por toda a vida. Nestas horas percebo quão tênue é a linha entre a brincadeira e a humilhação, a iniciação e o rebaixamento moral.
Em uma era em que muitas verdades, usos e costumes vêm sendo desconstruídos por serem completamente ultrapassados, é hora de colocar em questão este costume que, em minha opinião, só serve para afastar o ingressante do que verdadeiramente importa: aprender. É bem verdade que por esta ser uma fase fundamental na vida do jovem, é interessante festejá-la, mas o trote não é uma maneira de dizer boas-vindas, e, sim, de humilhar o que ingressa na instituição.
Existem maneiras bem mais saudáveis de festejar este momento e que nada tem a ver com obrigar, forçar ou incentivar o calouro a participar de situações degradantes. Recentemente, em uma análise sobre essa prática centenária, o filósofo e professor do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas (MG), Paulo Denisar Fraga, disse que os trotes não são apenas uma violência física, mas também simbólica, e, talvez, tenham sido a primeira forma de bullying na educação. Bullying? Isso mesmo, o trote é comparado a essa prática degradante e muito comum já nos primeiros anos escolares e que visa apenas expor o colega a situações humilhantes e envoltas em violência física ou psicológica.
Segundo o filósofo e autor de "A violência no escárnio do trote tradicional", o trote atingiu a sua época de ouro na Idade Média, durante a formação das universidades e da vida nas emergentes cidades europeias. E nesta época a prática já representaria uma forma de discriminação e negação do outro, em que estudantes vindos dos centros urbanos atribuíam aos que chegavam do meio rural uma suposta bestialidade originária. Aos veteranos ficaria a incumbência de "curar" os ingressantes por meio de uma espécie de "batismo de fogo".
Com o passar dos anos esse "batismo de fogo" ou trote foi assimilado pelos estudantes universitários e, hoje, é apresentado como meio de integração, mas esquece-se, porém, que em sua origem o trote não integra, na verdade segrega. Esse rito de passagem às avessas precisa ser reinventado.
Neste mês, um estudante universitário, de 19 anos, que participava de um trote foi detido em Botucatu, no interior de São Paulo, por caminhar pelas ruas da cidade usando apenas uma tanga. A "brincadeira" de muito mau gosto fez com que o garoto fosse levado por guardas municipais a uma delegacia e ele agora responderá a um processo por ato obsceno.
O problema é que na maioria das universidades não há regras para esses casos, já que quando acontece algum problema em um trote, ele é tratado como caso disciplinar. Por isso apresentei na Assembleia paulista o projeto de lei 77/2009, que proíbe o trote estudantil aos alunos que ingressam em cursos superiores de todo o Estado. O projeto determina ainda que os dirigentes das instituições de ensino superior apliquem penalidades administrativas aos estudantes que praticarem o trote, incluindo a expulsão.
Para que a cultura do trote violento acabe é necessário que excluamos a nossa ideia de iniciação acadêmica vexatória moldada por séculos. É importante que as alternativas partam da própria universidade e que ela mesma acompanhe essas mudanças para que não haja nenhum tipo de violência. É fundamental propor que o aluno desenvolva ações voluntárias que despertem a cidadania. Seria interessante se os estudantes de medicina, por exemplo, conhecessem uma comunidade carente ou mesmo a rotina de um hospital público. O importante nesta fase é propor a interação entre os novos e antigos estudantes, de maneira a estimular a troca de vivências e conhecimentos. Desta forma, teremos universitários mais conscientes e dispostos a ajudar o próximo.
*Gilmaci Santos é deputado estadual pelo PRB
e presidente estadual do partido.