GACC - Grupo de Assistência à Criança com Câncer

GACC - Grupo de Assistência à Criança com Câncer
Desde o início de suas atividades, em 1996, o GACC - então Grupo de Apoio à Criança com Câncer - existe para aumentar a expectativa de vida e garantir a oferta e a qualidade global do tratamento oferecido integral e indistintamente a crianças e jovens com câncer, diagnosticados com idades entre 0 e 19 anos incompletos, independente de sexo, cor, religião ou posição socioeconômica.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Dois mil médicos cubanos continuam no País e sobrevivem na informalidade

Eles chegaram para trabalhar como médicos e agora são motoristas, ambulantes, faxineiros, criadores de peixes ornamentais e pedreiros. Desde o fim do ano passado, quando o governo cubano rompeu o acordo de cooperação com o Brasil em uma reação a críticas do então presidente eleito Jair Bolsonaro, um grupo de 2 mil profissionais do Mais Médicos decidiu ficar, diante da promessa de que não ficariam desamparados. Mas até agora não há perspectiva de que eles voltem a exercer a Medicina.
Juan Carlos Salas virou motorista e estuda terapia alternativas
Niurka Valedez Perez Schneider foi uma das que resolveram permanecer. Acolhida pelo prefeito da cidade goiana de Cidade Ocidental, ela deixou o posto onde atuava e passou a trabalhar no hospital, numa atividade administrativa. “Quando chego, evito entrar pela porta principal. Sempre tem um paciente ou outro que pergunta se não posso dar uma olhadinha rápida. Atender é minha paixão, mas estou impedida.”
Roberto Carlos Rodriguez Bach vive na cidade amazonense de Nova Olinda do Norte e vez ou outra é também abordado por moradores em busca de uma consulta. Há cinco anos ali, ele casou-se com uma brasileira, tem dois filhos e não esconde a saudade do atendimento médico que fazia no distrito indígena em que trabalhava. “Desde que saí, o posto continua vago. A informação é de que nesta semana uma pessoa deverá iniciar o trabalho. Mas, imagine, cinco meses sem uma pessoa fixa para atuar no lugar.”
Enquanto a aldeia esperava por um médico, Bach viu suas economias irem embora. A solução foi começar a trabalhar com a mulher, vendendo farofa com carne salgada em uma praça da cidade. “Isso faço à noite. De dia, trabalho em um supermercado, arrumando estoques.”
Chamados de “irmãos” no programa de governo de Bolsonaro, os cubanos acreditavam que teriam uma oportunidade de continuar no programa, criado pelo governo de Dilma Rousseff em 2013 para fixar médicos em áreas de difícil acesso, onde brasileiros não se interessavam em atuar. Em novembro, depois do rompimento, o então ministro da Saúde do governo Michel Temer, Gilberto Occhi, afirmou que os médicos cubanos interessados em permanecer no País receberiam assistência.
“Fomos humilhados. Nossa vez nunca chegou”, comenta Niurka. A estimativa é de que cerca de 700 casaram-se com brasileiros e, por isso, têm permissão para trabalhar no País. Mas isso não vale para a Medicina. Estrangeiros que não estão no Mais Médicos somente podem exercê-la se validarem o diploma. Isso é feito por uma prova, cuja realização é determinada pelo MEC, com calendários mais rígidos e mais longos que vestibulares. Enquanto uma solução não vem, o grupo resiste, pensa em novas formas de sustento e se organiza para cobrar respostas do governo federal.

Reflexos

Bach não é o único médico cubano cujo cargo ficou desocupado por um longo período. Assim que a cooperação com o governo de Cuba foi extinta, o Ministério da Saúde organizou sucessivas rodadas de seleção para preenchimento de 8.517 vagas abertas com o fim do Mais Médicos. Editais foram realizados e os postos foram ocupados por médicos formados no Brasil ou graduados no Exterior. Deste total, até o início de abril, 1.052 profissionais já haviam saído do programa. “Eles arrumam outras ocupações, passam em provas de residência, não se adaptam”, relata o presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde, Mauro Junqueira.
Os reflexos da dificuldade enfrentada pelo preenchimento dos postos de saúde podem ser constatados no Diário Oficial. Semana passada, para conter o descontentamento dos municípios – os principais afetados, sobretudo na atenção básica –, o Ministério da Saúde afrouxou as penalidades para equipes incompletas do Programa de Saúde da Família. Antes, municípios que não repusessem profissionais da equipe em um prazo de 60 dias eram penalizados com a suspensão de repasses de recursos. Agora, esse prazo é de seis meses, justamente para dar uma folga na contratação.

Licença

Secretários municipais estão entre os grupos que mais fazem pressão para que a situação dos médicos cubanos seja resolvida. Junqueira disse estar otimista e espera que, até o fim do mês, um projeto de lei a respeito esteja pronto. O grupo defende a concessão de uma autorização para cubanos trabalharem por período determinado.
A autorização já é concedida pelo Ministério da Saúde a médicos formados no exterior. Ela prevê uma série de condições: profissionais têm de cumprir uma carga horária mínima e somente podem trabalhar na atenção primária nas cidades atendidas pelo Mais Médicos. “A ideia seria estender a autorização por um ano ou dois para que cubanos possam voltar a atuar no programa”, diz Junqueira.
Nesse formato, seria estabelecido um período para que o profissional pudesse se preparar para realizar a prova de validação do diploma – processo indispensável para que médicos formados no exterior possam também atuar no País.
Ao Estado, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou que as mudanças não podem ser feitas por meio de portaria. “Têm de ser feitas via Congresso”, diz. Integrantes da pasta confirmaram que a alternativa mais cotada seria a concessão da autorização temporária.
Pelas contas da pasta, são 2 mil profissionais que, depois do fim do acordo, decidiram ficar no Brasil. Desse total, 22 profissionais atuam no programa amparados em decisões judiciais. Os médicos cubanos se organizaram num grupo que reúne 1.700 pessoas.
Nesta semana, o Estado conversou com um médico do Espírito Santo que decidiu trabalhar como pedreiro. Com receio de se expor, ele não quis dar entrevistas. “Alguns não querem se deixar fotografar na nova atividade”, conta Niurka. O constrangimento de ser visto exercendo outra função vem acompanhado também da sombra da medicina.
“Tem muita gente que não quer dar emprego mais simples, achando que seria uma afronta para a gente”, conta a médica, que ao lado de colegas fundou a associação para lutar pelos direitos dos profissionais que não quiseram voltar para Cuba. “Nessa nova situação, nossa formação é ao mesmo tempo nosso orgulho e obstáculo .”
Poucos são os que se sentem à vontade para dizer porque, diante de tantas dificuldades, não quiseram retornar para Cuba. “Tenho muitas esperanças de fazer o Revalida e exercer a profissão aqui”, diz Bach. “Não quero nada de graça, apenas uma oportunidade para continuar trabalhando num lugar que me apaixonei, que formei vínculos, que tenho certeza de que posso ajudar e, claro, também posso ficar feliz.”

'Vamos nos virando'

Sem perspectiva a curto prazo de voltar a exercer a medicina, Juan Carlos Salas começou a trabalhar como motorista de um aplicativo. “É uma função digna, consigo dinheiro para despesas pequenas”, constata o cubano, que chegou a Pires do Rio em 2014 graças ao Mais Médicos. Embora a esperança de retomar as consultas seja grande, Salas diz que não vai apenas esperar uma providência do governo. Seguindo os passos de um colega, ele iniciou um curso de terapias alternativas. Já fez um de ventosas e agora prepara-se para fazer um de acupuntura. “Está mais próximo da minha área, o rendimento é melhor do que o de motorista”, constata.
O médico cubano, Yonnel Gomez Barrero após deixar o Mais Médicos cria peixes e conta com doaçõesSalas diz estar surpreso com a demora em encontrar uma solução para o caso de cubanos que decidiram permanecer no País mesmo depois do fim do acordo com Cuba. “Achávamos que, por causa das diferenças políticas, seria encontrada uma saída. Teríamos o salário integral de médico do programa ou seria feito uma prova para validarmos o diploma”, conta. Mas nada disso foi feito. Quanto mais o tempo passa, mais grave a situação de colegas. “Vamos nos virando. Mas não seria muito melhor para todos se pudéssemos trabalhar como médicos?"

Doações

O médico Yonnel Gomez Barreiro reduz o tom de voz quando o assunto é seu sustento. Aos 36 anos, ele passou a viver de doações de pacientes que atendeu durante o programa Mais Médicos. A queda no padrão de vida foi rápida. Quando chegou a Luziânia, em 2014, ele dividia com colegas cubanos um quarto de hotel na região central da cidade. “Entre ajuda de custo do município e o salário pago pelo governo, recebia cerca de R$ 5 mil”. Mesmo pouco, o dinheiro foi essencial para levar a diante os planos de casamento com a Vânia, uma motorista da cidade com quem, pouco tempo depois, teve o filho Gabriel.
Desde que o governo de Cuba rompeu o acordo de cooperação com o Brasil, Barreiro já perdeu as contas de quantas entrevistas de emprego já fez. Tentou trabalhar em farmácia, em recepção. “Mas as pessoas têm um certo receio de achar que eu, como médico, agora não posso fazer esse tipo de atividade. Eles ficam com vergonha.” As fraldas de Gabriel vêm de doações, o supermercado é oferta de um colega cubano que anos atrás, certo de que queria continuar no Brasil, validou o diploma. “Não perco a esperança de voltar a atuar”, diz.
Enquanto isso não acontece, para ter um pouco mais de liberdade com dinheiro, começou a fazer uma criação de peixes ornamentais em três caixas d'água, dispostas no quintal apertado dos fundos da casa em que vive. “Como não tenho mais pacientes, trato deles com muita atenção. Refeições, cuidados. E eles sabem quando me aproximo, parece que até já me conhecem”, tenta se animar. A ideia é vendê-los. “Já tenho um colega que se comprometeu a me ajudar. Sei que isso não será suficiente para me sustentar. Mas será uma ajuda.”
Uma das maiores críticas feitas ao acordo do Mais Médicos com Cuba era que um porcentual significativo do salário dos profissionais ficava com o governo cubano. A justificativa era de que o dinheiro iria para pagamento de benefícios. Para críticos, essa estratégia era comparada a trabalho escravo.
Apesar das dificuldades, Yonnel diz não ter vontade de voltar para Cuba. “Eu gosto do meu país. Mas fiz minha vida aqui.”

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