GACC - Grupo de Assistência à Criança com Câncer

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Desde o início de suas atividades, em 1996, o GACC - então Grupo de Apoio à Criança com Câncer - existe para aumentar a expectativa de vida e garantir a oferta e a qualidade global do tratamento oferecido integral e indistintamente a crianças e jovens com câncer, diagnosticados com idades entre 0 e 19 anos incompletos, independente de sexo, cor, religião ou posição socioeconômica.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Monstruosidade maravilhosa


Uma carta-manifesto do cineasta Felipe Bragança por uma arte que recupere
medos e delírios do Rio de Janeiro, contra sua redução a centro de convenções

Acompanhando um encontro aéreo improvável entre o Capitão Nascimento e Blu, o pássaro azul do desenho animado “Rio”, o cineasta Felipe Bragança descobre um ângulo novo de um panorama que parece já bem mapeado. Em aparência opostos no modo como “desvendam” e passam a representar o Rio de Janeiro, em filmes de grande sucesso comercial, os personagens se aproximam numa rejeição comum aos problemas cariocas: Nascimento ao deixar a cidade corrupta e voar para Brasília, no final do filme de José Padilha, Blu em seu sobrevoo por um Rio idealizado e reduzido a cartão postal. Jovem diretor com dois filmes em cartaz no Rio (“A alegria” e “A fuga da mulher gorila”), Bragança defende nesta Logo que uma arte interessada na democratização da cidade precisa distinguir entre o desejo de paz legítimo e a ocultação dos conflitos, para evitar a redução da cidade a um “balneário de eventos”. (Miguel Conde)

Felipe Bragança

Arquitetos, urbanistas, escritores, cineastas — esta aqui é uma carta: há algo de muito relevante que precisa vir à tona nos questionamentos sobre as formas e os caminhos da cantada “revitalização” da cidade do Rio de Janeiro, e que está além da especulação imobiliária ou da ação policial nessa ou naquela área da cidade como forma de controle criminal. Trata-se aqui também da economia simbólica da cidade e do que está em jogo nela nesse momento histórico de “limpeza” e “ordem” em que, como contraponto ao “inferno da violência”, parece querer se erguer uma cidade calcada numa representação plástica de si mesma.

A pergunta que me faço é: a reordenação de uma cidade passa necessariamente pelo desaparecimento de seus monstros e fantasmas? É impossível pensar uma cidade menos cruel com seus habitantes sem que no conjunto social da crueldade se inclua também aquilo que há de positivo e afirmativo no imaginário violento e caótico do Rio, hoje? “Positivo e afirmativo?” Sim. É importante que na recomposição de signos que a cidade hoje passa, se coloque em xeque a ideia da violência como um dado meramente negativo, criminal, perigoso ao bem-estar da cidade. E se perceba que a pacificação policial da cidade não pode significar uma pacificação de seus signos, de seus mistérios, de seus delírios e sua imaginação.

Zerar as mazelas da cidade e substituí-la por um projeto asséptico e ordeiro de urbanidade é mesmo a única ação possível para uma ocupação mais complexa e democrática da cidade? Como pode sobreviver um organismo vivo — cidade, corpo — se seus medos e delírios forem varridos como erros, se seus ruídos forem banidos como “falhas no sistema”? Depois de duas décadas cercada pela dicotomia “paraíso tropical” x “inferno da violência”, a cidade respira hoje ares de sobrevoo sobre si mesma — como se fosse possível mover um corpo complexo da urbe por um grande processo de panorâmicas onde Capitão Nascimento e Blu (o papagaio azul de “Rio”) se encontram entre as nuvens numa síntese perigosa: a “cidade real” é um dado a ser negado porque desumano (o personagem foge para Brasília como paladino da justiça) e a cidade sonhada é algo a ser celebrado também porque desumano. Entre a negação absoluta de suas entranhas de
corrupção e a celebração de suas maravilhas simuladas, o Rio se insurge contra si mesmo e a favor de uma imitação de futuro.

Que esta é uma cidade de imitações, não é novidade: o Rio já quis ser Lisboa quando Lisboa já havia, já quis ser Paris quando Paris já havia, Miami quando Miami já havia… e agora quer, enfim (?), ser o Rio. É evidente que, como cidade de imitações, a cidade precise se espelhar em si mesma como imagem ícone/cartão-postal para se afirmar. Mas esse é o desafio simbólico: como lidar com uma cidade que quer se imitar? Que tenta cada vez mais ser parecida com aquilo que sonha de si — como numa plástica, num plágio?

É evidente que nesse processo de imitação, de mímica, todo tipo de erro, de ruído, de forma menos polida, é contraproducente para o imitador — e a cidade hoje como um mímico parece se espelhar nos gestos mais facilmente identificáveis dessa cidade mitológica e paradisíaca à beira mar que um dia a Bossa Nova cantou como desejo e que hoje se transformou numa espécie de “obrigação moral”, como norma de conduta. Mas uma pacificação precisa mesmo ser confundida com uma apaziguamento das forças criadoras da cidade? A Lapa imitará apenas a Lapa, o samba o samba, Ipanema Ipanema, o Cristo o Cristo, o carnava o carnaval. Seremos uma cidade melhor se limitarmos de nosso imaginário os nossos erros, desvios e defeitos? Filha de seu caos original, essa cidade criada em torno de um porto, receptora e liquidificadora de signos, pelo mangue e pelo aperto entre o mar e a floresta — o Rio de Janeiro nunca foi encantador e potente por ser confortável e aconchegante, acolhedor. Desde sempre, sua sedução se construiu pelos mistérios de suas ruas, pelo sangue no asfalto, pela floresta de fantasmas, escravos fugidos, crimes, medos, sonhos, umidade, calor demais, desamparo. A potência estética e criativa do Rio sempre esteve ligada diretamente a seu lugar de desafio, de certo distanciamento sedutor que dava a ela mais vivacidade do que a de um balneário de eventos de corpo aberto para ser ocupado.

O que eu estou tentando dizer é que os signos da insegurança, da dúvida, das sombras, do incerto, sempre foram essenciais para o lugar da cidade como pólo de ebulição criativa, de uma cidade teimosamente incrustada num desconforto geográfico e fruto do embate. Criminalizar a violência cultural do Rio de Janeiro seria negar a gana fervente que deu origem a alguns de seus maiores patrimônios imaginários. Sempre foi da febre (não da saúde) que a cidade gerou seus gestos mais politicamente potentes, culturalmente impactantes e geradores de novas possibilidades de vida e representação. Junto da retomada dos espaços físicos pelo Estado diante de uma criminalidade que se apontava descontrolada, é preciso também uma retomada do próprio conceito de violência e medo e delírio e fantasmas nessa cidade densa, espirituosa, monstruosa. A cidade não pode se travestir de princesa e negar seus gestos sanguíneos, violentos, fortes. O risco e a perda simbólicas seriam incalculáveis. Num panorama politico de ações de limpeza, me parece ser papel
dos escritores, dos cineastas, dos artesãos do imaginário, uma dedicação diária a se trazer à tona nossos monstros, fantasias e fantasmas como antídoto dentro do panorama de deflação do espírito em que o novo planejamento da cidade nos tem levado. Uma cidade que possa retomar a si mesma não como baile de debutantes bem perfumado, como peeling negando o erro, mas como festa necessariamente inconclusa e porosa.

Diante do realismo pacifista ou belicoso dos telejornais e do discurso oficial, é necessária uma reação fantasiosa, delirante e mágica da cidade, lidando com gêneros, com sonhos e ilusões: através de filmes, livros, histórias, músicas, pulsos culturais capazes de manter viva a monstruosidade maravilhosa da cidade e seus enigmas. É um território de luta estética essencial hoje para as ações de nossos escribas, criadores de imagens, filósofos, músicos — manter viva a fantasmagoria das ruas, que nos proteja de uma cidade sem sombras, sem dúvidas e sem delirios. Uma economia imagética da fantasia, do mistério, da margem e do onírico — vistos não como fuga do “real incontornável” mas como uma necessária acumulação de camadas poéticas que venham na contramão combativa da raspagem cultural pela qual a cidade vem passando em seu intuito de cidade clara, ampla e limpa como um salão de eventos internacionais. É hora de convocar e atualizar os porões do centro da cidade, os vultos das ruas, os fantasmas de nossa memória de embates e rupturas e as máscaras que possam ampliar as expressões de nossos rostos para além do medo paralisante que nos tomou nas últimas décadas ou da bonança apaziguada que se vende agora como antídoto. É lugar do gesto da arte, nessa cidade que se quer nova, reunir a experimentação com a memória mágica (não a nostalgia de quem acha que a potência cultural da cidade parou nos anos 1960) de nossas festas e ruas e gerar alguma brecha desviante em direção a uma cidade que sonhe e delire e se desafie... E que não se aceite como uma cidade congelada (dopada?) em um menu de paisagens.

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