O poder de interferir digitalmente na imagem (e no som) mudou o sentido do retoque
Auto-Tune é um processador, um plug-in, que você usa para afinar uma voz ou um instrumento numa gravação. É um manipulador de pitch, altura (não no sentido popular de “volume” mas no propriamente musical de subida ou descida entre sons graves e agudos). Uma vez comparei o uso do Auto-Tune ao do Photoshop, e Fernando Salem não gostou da comparação. Eu estava tentando explicar o mal-estar que tendemos a sentir quando percebemos que uma voz afinadíssima num CD foi tratada com essa ferramenta e, além de notar falsidade na lisura da nota e mudança no timbre da voz, ficar triste por não poder mais estar seguro a respeito de um cantor novo quanto a sua capacidade musical. (Meu filho Zeca me mostrou no You- Tube uma cantora pop americana que soava afinadíssima no clipe da gravação de estúdio e muito desafinada numa apresentação ao vivo.)
O Photoshop não nos deixa seguros quanto à situação real da pele ou dos músculos de uma pessoa fotografada — para dizer o mínimo. Houve um caso em que a “Economist” retirou alguém de perto de Obama numa foto de capa (era uma dessas capas simbólicas que a “Time” popularizou, e não uma informação jornalística, mas deu discussão). Nos perguntamos que uso Stalin faria da manipulação de fotos com tamanha precisão e poder de convencimento.
Salem relembra os retoques e as adições de cor tão populares em retratos de família feitos para pôr na parede das casas. Eu completaria lembrando que as imagens das estrelas nas capas e páginas das revistas que líamos em nossa infância não estavam isentas de intervenções. Os retoques eram mais perceptíveis à primeira vista — esta é a única diferença entre os tratamentos de imagem de uma “Fatos e Fotos” e do perfeito sumiço das celulites em retratos de supermodels em revistas atuais. O poder de interferir digitalmente na imagem (e no som) mudou o sentido do retoque.
O Auto-Tune (como o Melodine e outros congêneres) também tem seus antepassados. A edição de trechos (mesmo sílabas) mais afinados, criando uma performance toda correta a partir de muitos pedaços de outras cheias de defeitos é apenas um exemplo. Mas quero ir mais longe aqui. A ideia é considerar o advento do Auto-Tune como algo semelhante ao advento do microfone elétrico. Não só Cher e T-Pain — mais Kanye West e tantos seguidores — mostram que pode haver um “cantar bem” que já conta com esse tipo de plug-in: ouvindo o jovem James Blake utilizar ferramentas de manipulação de pitch em números ao vivo (sim, mesmo entre cantores convencionais já faz tempo que se usa também ao vivo corretores de afinação, com resultados variados), percebemos que um uso artístico, propriamente musical, pode ser atingido nas relações entre o modo de cantar e o manuseio dos efeitos que essas ferramentas oferecem. Os critérios de julgamento da capacidade de cantar mudam com as novas tecnologias. Como mudaram quando microfones sensíveis deixaram para trás a necessidade de potência vocal. Quando eu era menino — e apesar da existência de Mário Reis — ainda era valor estético exigível que o cantor tivesse uma voz grande. Eu disse valor estético. Não era uma mera medição de potência vocal. Cantar bem significava poder e saber projetar intensamente a voz.
As gravações de Noel Rosa, de Cole Porter ou de Ary Barroso cantando eram acolhidas como documentos, não como performances que valessem por si mesmas. Mário Reis foi o primeiro a levar às últimas consequências o uso do microfone elétrico entre nós. Talvez seja um pioneiro mundial. Mesmo Chet Baker foi considerado um mau cantor por seus pares americanos. João Gilberto criou um estilo intrincado e tão rico a partir do uso mínimo da voz que praticamente encerrou o assunto. Mesmo assim, encontrou muita resistência entre críticos, colegas e, sobretudo, divulgadores de gravadoras.
Eu não conhecia James Blake. A bem dizer, ainda não conheço. Mas meu amigo Duda me mandou um link para uma apresentação dele no festival do Pitchfork, e eu fui olhar mais dois exemplos no YouTube. Ele usa manipuladores de altura em combinação com as intenções da emissão vocal de um modo tão sofisticado que parece ter dado um passo interessante nessa discussão.
É sabido que alguns cantores americanos fizeram questão de explicitar na contracapa de seus discos que não havia uso de nenhum artifício para afinar seus gorgeios. Outros o superexpõem. A sensação de que o uso pode ter resultados opostos ao pretendido, ou seja, fazer parecer que alguém canta bem, a gente pode ter ouvindo algumas gravações brasileiras em que o truque é usado mas o material inicial não é congenial a ele. Há uma canção que escrevi para Gal cantar que trata de modo oblíquo desse assunto, no novo disco. Passamos por todas as etapas sobre as quais falei acima durante a pós-produção da faixa. Resolvemos por deixar a voz dela sem o retoque, enquanto canta exatamente a respeito do assunto, e usamos o artifício — de modo ostensivo — apenas quando ela cantarola improvisadamente, sem palavras. E nesse uso, deixamos aparecer tanto a graça que pode advir de processos como esse quanto a relativa inadequação que pode haver entre certos estilos e sua utilização.
Estou no Colorado, num festival de cinema. O lugar é lindo. Tenho tarefas aqui. Devo ter escrito de modo mais confuso do que o habitual. Hoje apresento “Deus e o Diabo” para gente exigente. Penso no disco de Gal e no destino do Brasil. O mundo se vira.
O Photoshop não nos deixa seguros quanto à situação real da pele ou dos músculos de uma pessoa fotografada — para dizer o mínimo. Houve um caso em que a “Economist” retirou alguém de perto de Obama numa foto de capa (era uma dessas capas simbólicas que a “Time” popularizou, e não uma informação jornalística, mas deu discussão). Nos perguntamos que uso Stalin faria da manipulação de fotos com tamanha precisão e poder de convencimento.
Salem relembra os retoques e as adições de cor tão populares em retratos de família feitos para pôr na parede das casas. Eu completaria lembrando que as imagens das estrelas nas capas e páginas das revistas que líamos em nossa infância não estavam isentas de intervenções. Os retoques eram mais perceptíveis à primeira vista — esta é a única diferença entre os tratamentos de imagem de uma “Fatos e Fotos” e do perfeito sumiço das celulites em retratos de supermodels em revistas atuais. O poder de interferir digitalmente na imagem (e no som) mudou o sentido do retoque.
O Auto-Tune (como o Melodine e outros congêneres) também tem seus antepassados. A edição de trechos (mesmo sílabas) mais afinados, criando uma performance toda correta a partir de muitos pedaços de outras cheias de defeitos é apenas um exemplo. Mas quero ir mais longe aqui. A ideia é considerar o advento do Auto-Tune como algo semelhante ao advento do microfone elétrico. Não só Cher e T-Pain — mais Kanye West e tantos seguidores — mostram que pode haver um “cantar bem” que já conta com esse tipo de plug-in: ouvindo o jovem James Blake utilizar ferramentas de manipulação de pitch em números ao vivo (sim, mesmo entre cantores convencionais já faz tempo que se usa também ao vivo corretores de afinação, com resultados variados), percebemos que um uso artístico, propriamente musical, pode ser atingido nas relações entre o modo de cantar e o manuseio dos efeitos que essas ferramentas oferecem. Os critérios de julgamento da capacidade de cantar mudam com as novas tecnologias. Como mudaram quando microfones sensíveis deixaram para trás a necessidade de potência vocal. Quando eu era menino — e apesar da existência de Mário Reis — ainda era valor estético exigível que o cantor tivesse uma voz grande. Eu disse valor estético. Não era uma mera medição de potência vocal. Cantar bem significava poder e saber projetar intensamente a voz.
As gravações de Noel Rosa, de Cole Porter ou de Ary Barroso cantando eram acolhidas como documentos, não como performances que valessem por si mesmas. Mário Reis foi o primeiro a levar às últimas consequências o uso do microfone elétrico entre nós. Talvez seja um pioneiro mundial. Mesmo Chet Baker foi considerado um mau cantor por seus pares americanos. João Gilberto criou um estilo intrincado e tão rico a partir do uso mínimo da voz que praticamente encerrou o assunto. Mesmo assim, encontrou muita resistência entre críticos, colegas e, sobretudo, divulgadores de gravadoras.
Eu não conhecia James Blake. A bem dizer, ainda não conheço. Mas meu amigo Duda me mandou um link para uma apresentação dele no festival do Pitchfork, e eu fui olhar mais dois exemplos no YouTube. Ele usa manipuladores de altura em combinação com as intenções da emissão vocal de um modo tão sofisticado que parece ter dado um passo interessante nessa discussão.
É sabido que alguns cantores americanos fizeram questão de explicitar na contracapa de seus discos que não havia uso de nenhum artifício para afinar seus gorgeios. Outros o superexpõem. A sensação de que o uso pode ter resultados opostos ao pretendido, ou seja, fazer parecer que alguém canta bem, a gente pode ter ouvindo algumas gravações brasileiras em que o truque é usado mas o material inicial não é congenial a ele. Há uma canção que escrevi para Gal cantar que trata de modo oblíquo desse assunto, no novo disco. Passamos por todas as etapas sobre as quais falei acima durante a pós-produção da faixa. Resolvemos por deixar a voz dela sem o retoque, enquanto canta exatamente a respeito do assunto, e usamos o artifício — de modo ostensivo — apenas quando ela cantarola improvisadamente, sem palavras. E nesse uso, deixamos aparecer tanto a graça que pode advir de processos como esse quanto a relativa inadequação que pode haver entre certos estilos e sua utilização.
Estou no Colorado, num festival de cinema. O lugar é lindo. Tenho tarefas aqui. Devo ter escrito de modo mais confuso do que o habitual. Hoje apresento “Deus e o Diabo” para gente exigente. Penso no disco de Gal e no destino do Brasil. O mundo se vira.
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