Giselle Câmara Groeninga é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.
O tema toca a mais extrema e sombria realidade da alienação parental — as falsas denúncias de abuso sexual. E, como tenho feito neste espaço da ConJur, o objetivo é o de buscar algum esclarecimento, com os aportes da psicanálise, da (in)compreensão dos processos familiares levados ao Judiciário. São intrincadas, no limiar entre objetividade e subjetividade, as questões que envolvem o Direito de Família e seus operadores, sobretudo nestes casos.
As denúncias de abuso sexual têm um efeito bombástico que precisa ser compreendido por parte daqueles que devem interpretá-las e tomar medidas de proteção e de reequilíbrio do sistema familiar. Sejam aquelas falsas ou verdadeiras, a realidade é uma só: a de violência nas relações familiares. E a esta não se pode fazer eco.
O foco aqui é o das denúncias falsas de abuso sexual mas, por chocante que o seja, elas sempre guardam um tanto de verdade em relação a desejos e fantasias infantis que, de alguma forma, povoam a mente inconsciente de todos nós. E disto decorre, em parte, a grande dificuldade em sua abordagem.
A psicanálise enfrentou em sua origem o tabu da sexualidade com a candente questão em, justamente, diferenciar o que seria o trauma devido à sedução sexual por familiares, uma questão da realidade objetiva, do que seriam fantasias inconscientes. Estas foram descobertas por Freud por meio do método psicanalítico. Verificou ele que, a despeito dos relatos, não necessariamente teria havido um abuso sexual, uma sedução, e sim que tais fantasias emergiriam como sintomas, levando a confundir a realidade subjetiva com a ocorrência de acontecimentos objetivos.
A questão é atual: teria ocorrido um abuso, que fere a lei fundamental de constituição da família — o tabu do incesto — ou a crença em sua ocorrência seria produto de um sintoma de um transtorno mental, de tentativa de alienação e mesmo de um erro de avaliação? O resultado de tais indagações foi, à época, o descortinar da epistemologia psicanalítica sem, obviamente, desconsiderar a realidade objetiva. E é neste terreno pantanoso, da realidade e da fantasia, da objetividade e da subjetividade que caminha a investigação psicanalítica.
Na situação em pauta é de todo evidente a necessidade em compreender as denúncias com o instrumental epistemológico aportado pela psicanálise. Neste sentido é que trago aqui estas breves considerações.
Os impasses levados ao Judiciário são vistos pela psicanálise como sintomas de relações disfuncionais, i.e., os integrantes da família não estão podendo exercer suas funções, ocupar seus lugares — um desequilíbrio quanto ao exercício do Poder Familiar. Os vínculos familiares são formados por afetos que têm qualidades de agregar, no caso dos sentimentos de amor, e qualidades de desagregar, no caso dos sentimentos de agressividade. Os sentimentos de amor promovem o conhecimento de si e do outro, e a empatia. Já os sentimentos de agressividade e ódio desagregam e promovem o desconhecimento do outro e de si próprio.
Certo é que amor e ódio não existem puros, mas sempre em combinação, dosados em diferentes proporções. Mas, quando muito desbalanceados para o lado da agressividade, não só são afetos que desagregam, e que promovem o desconhecimento, como são afetos que pervertem as relações familiares. Relações que devem pautar-se pelo cuidado sobretudo com os mais vulneráveis, inclusive quanto à expressão da sexualidade adulta.
A lei fundamental de constituição da família, o que define o que é proibido e o que é permitido, é o tabu do incesto. Ela marca a diferença entre gerações e as possibilidades e impossibilidades quanto à expressão dos afetos e manifestações da sexualidade. Uma lei que define o estado — de pai, de mãe, de filho — e que delimita as condições para o livre desenvolvimento da personalidade e para o exercício dos direitos da personalidade — as funções materna, paterna, parental, filial, fraterna. Uma diferença objetiva quanto ao exercício das funções e essencial para a constituição da personalidade.
No entanto, antes de se chegar ao estágio adulto de clareza e objetividade quanto à diferença entre gerações, e entre o que é permitido e o que é proibido, há a infância e sua alta dose de subjetividade. A mente infantil é povoada de legítimas fantasias, ternamente românticas em formar um par com a mãe e/ou com o pai, e surpreendentemente agressivas em ao outro excluir. Fantasias que são reprimidas já muito cedo, no processo de formação da mente, mas que habitam de forma latente o inconsciente de todos nós. Fantasias que podem estar em camadas mais ou menos profundas do psiquismo, mas que são susceptíveis de emergir em crises quando, então, pode se perder a diferença entre o que é fantasia e o que é realidade, entre o que é subjetivo e o que é objetivo, entre o adulto e a criança.
E a questão é ainda mais complexa pois as situações de separação e crise familiar podem ser particularmente férteis à confusão entre a realidade e as fantasias mais próprias à infância. Isso porque, neste contexto, em que os lugares e funções dos adultos devem ser redefinidos, é até certo ponto natural que emerjam nestes fragilidades mais próprias à infância, somadas a sentimentos de exclusão e mágoa. Os lugares de adultos e crianças, até então relativamente claros, podem ser confundidos. Não raro os adultos deslocam afetos para os filhos que, transitoriamente, ocupam amorosamente o lugar do par perdido ou o lugar de rival para aquele que se sente excluído.
Neste contexto, podem ter lugar as mais diversas fantasias. Muitas vezes, se aqueles afetos deslocados para a relação com os filhos estiverem acompanhados de fantasias relativas à sexualidade adulta, o que podia ser apenas ciúmes, ressentimento e exclusão, para citar alguns sentimentos, pode ser confundido com manifestações reais, e não em fantasia, da sexualidade adulta.
Assim, por exemplo, meros cuidados com a higiene são transformados em denúncias de aproximação de cunho sexual, verbalizações das crianças, absolutamente naturais, de desejos em formar um par romântico com um dos genitores podem ser tomadas como relatos de fatos acontecidos, ecoando no que seria a porção inconsciente infantil que habita a mente dos adultos.
Lamentavelmente, não raro tais fantasias fazem eco nas fantasias inconscientes dos profissionais. Nessa situação, pode se perder a questão central em diferenciar a realidade objetiva da subjetividade e da fantasia, e a denúncia pode ser tomada de pronto como verdadeira.
As denúncias de abuso sexual causam comoção, fazem eco àquelas fantasias latentes em todos nós causando horror e, muitas vezes, reações descontroladas e violentas. O primeiro impulso deve ser o de proteção, mas que, no mais das vezes, fere a presunção de inocência com as medidas de afastamento daquele que foi identificado como abusador o que, de alguma forma, legitima a denúncia.
A necessária parcimônia demanda que, instalada a questão, cabe apurar se há confusão entre objetividade e subjetividade, entre realidade e fantasia, por difícil que isto possa ser. Como dito, as denúncias de abuso sexual, sejam falsas ou verdadeiras, denotam vínculos pautados pela violência. E a estes os operadores do direito não podem fazer eco, cabendo-lhes, pelo contrário, com a colaboração dos operadores da saúde, resgatar o conhecimento do contexto e das relações para, então, buscar meios de restabelecer o exercício das funções.
Aqueles que, erroneamente, interpretam a situação, colocando-se rapidamente em defesa da criança e da infância, sem questionar e ter consciência das dificuldades e possibilidades de erros de avaliação, e mesmo da violência e da agressividade neles contida, em muito contribuem para a alienação não só do adulto alvo da falsa denúncia.