Certa vez, uma velha senhora foi visitar a Oficina de Cerâmica de Francisco Brennand, localizada no bairro da Várzea, no Recife. Ela aproveitou a oportunidade para conhecer o tão "badalado" templo de arte, já que sua sobrinha, uma jovem arquiteta, iria encomendar cerâmicas para a construção que estava realizando. Depois de terminada a compra, a arquiteta não encontrou mais a tia. O sumiço da velha mobilizou todos os funcionários da Cerâmica. Eles passaram a procurá-la por toda parte: pelo pátio, entre as esculturas e até nos fornos.
Só depois de muito custo, foram achar a velha senhora dormindo encolhida dentro do carro da sobrinha. A tia tinha se recusado a entrar no famoso museu de esculturas do artista porque ao se deparar com a primeira peça, a mulher de cabelos brancos ficou espantada, absorta, aniquilada e muda com a cena de horror que viu. Ela foi tomada por um violento repúdio. "Isso é uma carnificina!!!", sentenciou a velha senhora para sua sobrinha, já dentro do carro.
"Nunca ninguém tinha conseguido perceber em minha obra o que ela realmente é. A velha senhora foi a minha crítica mais aguda", revelou à Agência Meridional o artista Francisco Brennand, numa conversa de seis horas em seu ateliê. Ele só ficou sabendo do fato dias depois, quando a arquiteta voltou à oficina.
As imagens de sexo abundante nas esculturas de Brennand, com excesso de bundas, seios, falos e vulvas expostas até em bocas de anfíbios, mulheres ensanguentadas a golpes de punhal e espada, mulheres descabeçadas, como Inês de Castro, deuses que traem e são traídos, homens com cabeças de animal e seres hermafroditas estão longe de representar uma arte erótica como muitos críticos insistem em afirmar.
Em um de seus painéis está a inscrição das palavras de Joseph Conrad: "O horror, o horror". "Todos que chegam aqui ficam deslumbrados com a monumentalidade do conjunto e teimam em não particularizar as peças. Essas peças são as palavras para formar um livro. A verdade não é a beleza", adverte o artista citando Francis Bacon.
Antes de ser um elemento de fascínio, Brennand construiu uma obra de alerta e reflexão. Aos 70 anos, completados no último dia 11 de junho, ele tenta fugir do rótulo de um senhor respeitável e insuspeito, objeto de tantas homenagens recentes. "A maior parte das pessoas quer ignorar o que eu faço. Quando alguém chega na minha idade se torna cidadão acima de qualquer suspeita", lamenta.
"Nunca fui uma figura respeitável. Eu sou um anti-social. Mas a humanidade é naturalmente desatenta. Se as pessoas olhassem um pouco mais à direita iriam perceber o que eu quero expressar com a minha arte. Foi o que a velha senhora, desprovida de modismos e badalações, conseguiu enxergar. Não estou falando novidade. Isso sempre esteve em minha obra".
Brennand confessa que toda a exacerbação do sexo presente em sua obra é o reflexo de sua própria vida, conturbada. Quando chegou para se instalar nas ruínas da velha oficina, na Várzea, no início dos anos 70, Brennand já estava separado de sua esposa, a poetisa Deborah Vasconcelos Brennand, com quem teve duas filhas.
O artista passou a frequentar a zona portuária do Recife para encontrar estas mulheres, ditas generosas. "Estava a procura de putas e sexo farto", diz o mestre da cerâmica sem nenhum pudor. "Minhas companheiras eram pescadas muitas vezes nas camadas mais baixas da sociedade. Era no baixo meretrício mesmo", enfatiza. Ele levava essas mulheres para as ruínas de seu novo ateliê. Hoje, a transpiração daquelas experiências está representada em todos os detalhes do "templo Brennand".
Atualmente ele está entusiasmado numa série que está fazendo desde 1995 intitulada A História de Chapeuzinho Vermelho. Nessa revisão do conto infantil, Brennand retrata Chapeuzinho Vermelho em seus quadros como uma mulher lasciva, que provoca o Lobo.
A nova personagem é completamente diferente da inocente menina das histórias infantis. É ela quem toma a iniciativa e deita na cama do Lobo até ser devorada. "Foi o primeiro strip-tease da história", brinca Brennnad que já fez mais de 10 quadros dessa série. Quando questionado se o Lobo Mau era ele, o artista não hesitou em responder. "É claro que sim".
Talvez a obra de Francisco Brennand assuste. Mas a intenção é esta mesmo. A escultura que segundo ele é o cerne do seu pensamento chama-se Dioniso, datada de 1986. Ela vai ser exposta pela primeira vez no próximo ano, em São Paulo, numa mostra individual do artista para marcar a reabertura da Pinacoteca São Paulo, que fechou desde a exposição de Rodin. A peça representa o deus grego do desregramento, da transgressão, da bebida, do vinho e do delírio místico.
A figura criada pelo artista tem o corpo contorcido, o órgão sexual indefinido e a cabeça de coelho. "O coelho é um dos bichos mais sensuais. Cada vez que tem um orgasmo cai de costas e depois volta ao combate", sorri Brennand, deixando escapar uma observação despretensiosa.
Dono de uma arte polêmica, Brennand, para explicá-la, colocou certa vez num catálogo de uma exposição a seguinte frase de Agatha Christe: "Era um artista e conseqüentemente um imoral. Na verdade, ele era imoral e portanto deveria ser um artista". Ninguém compreendeu o que o artista quis dizer. Mas já era uma justificativa para que no futuro ninguém viesse a se espantar com declarações como estas, que fez à Agência Meridional pela primeira vez.
"Hoje eu tenho medo de pagar o preço por essa tentativa de descoberta. Armazenei em mim um profundo sentimento de culpa. Penetrei em certas províncias absolutamente proibidas. Não tenho dúvida de que a punição chegará. Como aconteceu com a Lady Diana, vai acontecer comigo e vai acontecer com todos os pecadores", alerta o mestre, que está lendo com entusiasmo o livro Crash, Estranhos Prazeres, de J. G.
Ballard, que narra a história de pessoas que sentem orgasmos vivenciando acidentes automobilísticos.
Para ele, esse templo erguido ao horror tem que servir como um objeto de reflexão. "De tudo o que está aqui, muito foi sofrimento e muito foi repúdio", confessa Brennand, um velho leitor do clássico 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade.
Foi o seu amigo Ariano Suassuna, escritor e dramaturgo paraibano, quem colocou no papel a crítica quedefine com exatidão esse universo Brennand. Foi num texto de apresentação para o catálogo da individual que o artista fez em Berlim, em 1993.
Suassuna narra uma visita imaginária que ele teria feito a "Ilumiara Brennand" com um certo judeu alemão chamado Josef David Yaari. Depois de discutir muito sobre a obra de Brennand e de iniciar a visita pelo pátio externo, Suassuna faz o convite:
- Não vou entrar. Não passo daqui!, recusou Yaari.
- Você vai deixar de ver o principal e o mais importante?, questionou Suassuna.
- Preciso me defender contra o "Horror" e mostrar a mim mesmo que o fascínio e a grandeza deste Horror não me vencem e nem me dobram!
De uma forma indireta, Suassuna expôs a principal característica desse artista de gênio, que reconhece a culpa de quem quebrou o elo sagrado do equilíbrio. "Eu sou um artista. Essa palavra me absolve de tudo", sentencia.
PICASSO
Como toda família tradicional pernambucana, o pai do jovem artista mandou seu filho estudar na Europa. Era 1949 e Francisco Brennandsó tinha 22 anos. Estava contaminado com idéias sobre a existência das artes maiores e das artes menores. Para Brennand pintura só em óleo sobre tela e escultura só com o mármore de carrara. Na primeira semana em Paris, o pintor Cícero Dias o convidou para uma exposição de cerâmicas de Picasso.
"Foi uma surpresa e ao mesmo tempo a suprema humilhação por ter tido pensamentos tão tolos. Fiquei desmoralizado por ter rejeitado a cerâmica, produto fabricado pelo meu pai", lembra o artista. Quando voltou da Europa, em 1953, Brennand correu para recuperar o tempo perdido. Até hoje ele usa para fazer cerâmica o barro selecionado pelo seu pai em prospecções feitas em diferentes regiões do Nordeste, especialmente do barro encontrado na cidade de Oeiras, no Piauí.
Depois de modelada, a obra entra na fornalha com 1.400 graus de temperatura. Cada peça fica exposta ao calor durante 24 horas, retornando ao fogo inúmeras vezes até chegar ao ponto de parecer uma rocha vulcânica. O resultado é uma alquimia que impressiona.
Após sucessivos estudos, conhecendo principalmente os mosaicos gregos e bizantinos, Brennand descobriu o potencial da fragmentação das cores. "Comecei a descobrir novas colorações contaminadas que hoje são copiadas em todo o Brasil", conta Brennand, lembrando que até recentemente uma das principais características da cerâmica era a uniformidade. "Não podia existir nenhuma pinta", acrescenta.
Quem chega ao pátio central da Oficina de Francisco Brennand, localizada às margens do rio Capibaribe, pode pensar que está sofrendo de alucinação. Tudo encanta pela grandiosidade. Num vasto espaço equivalente a dois campos de futebol, o incrédulo visitante atacado por uma "miragem" se questiona se está numa espécie de templo onde estão presentes a arte de dezenas de civilizações antigas.
Mas não é miragem. Tudo o que se vê é real. No centro do pátio está um ovo pendurado num cabo de aço representando a origem da vida. Esse ovo é protegido por uma infinidade de pássaros-rocas perfilados, como aqueles que lançavam pedras contra o navio de Simbad, o marinheiro.
Mas de onde surgem essas idéias? Em certa época, Miró começou a utilizar a fome para ter alucinações e começar a criar. Brennand também vai no mesmo caminho. Ele acredita nas alucinações, que consegue alcançar com a exacerbação do trabalho. "Depois de horas trabalhando o sangue começa a alterar. É o momento da exaustão. Você deixa de lado o racional e chega a solução ideal", explica Brennand. O mistério desse artista está desvendado. É a alquimia do sangue que transpassa para o barro, como se tudo fosse uma única matéria.