No filme “Obrigado por fumar”, Nick Naylor (vivido por Aaron Eckhart) é o porta-voz da “Academia para Estudos do Tabaco”, um grupo de estudos científicos que na prática serve de fachada para o lobby da indústria do cigarro. Durante uma acareação sobre os malefícios do cigarro, Naylor é questionado por um senador se as prioridades do seu grupo de estudos eram afetadas pelo fato de as corporações de cigarro serem os maiores patrocinadores dele. Sr. Naylor responde: “Não. Da mesma forma que, certamente, as contribuições de campanha não afetam o seu mandato” (Thank you for smoking, citado em IMDB).
O silêncio irritado do senador que se segue exala o cinismo que se instaura na democracia moderna quando o assunto é o financiamento de candidaturas políticas: é óbvio que as prioridades de um senador financiado por determinados grupos econômicos são afetadas pelos interesses de seus patrocinadores, da mesma forma que um centro de estudos financiado pela indústria do tabaco jamais servirá para dar prejuízo para quem paga suas contas. A lógica já foi denunciada há 150 anos pelo filósofo que adoram odiar: “o governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa” (Karl Marx, Manifesto Comunista, cap. 1). E não é segredo que a ideia original de parlamento não fosse exatamente democrática, como Eric Hobsbawm escreveu em seu A Era das Revoluções:
No geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata, mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários. (1977, p. 106-107, grifo nosso).
Não há, portanto, cinismo ou dissonância do lobismo em relação aos princípios democráticos. Inclusive, dada a lógica de mercado, é de se supor que, quanto mais rico seja o grupo de interesses privados, maior seja sua influência sobre o parlamento (GILLENS, 2012). Em vista disso, é imensamente importante para um país capitalista que se pretende republicano e transparente estabelecer parâmetros legais para o lobby empresarial, a fim de instituir instrumentos de controle legal sobre a influência de grupos de interesses privados nas políticas públicas.
Não é por acaso que hoje seja difícil encontrar um país capitalista rico em que não haja regulamentação ao lobby. Isto é, a atividade de lobista no interior do parlamento se tornou algo tão reconhecidamente estabelecido que, mesmo nos países onde ela já seria protegida pela liberdade de expressão como os EUA, Alemanha ou no parlamento da União Europeia, fez-se necessário dar transparência e organização ao “mercado de congressistas”. Assim, admite-se que haja, desde que de maneira pública, organizada e legalizada, a influência inevitável de grupos de interesses particulares sobre as decisões dos congressistas. Isso inclusive reforçaria a ilusão de que “qualquer um pode influenciar igualmente o seu parlamentar” e que o eleitor pode fazer a escolha mais “informada”. O afirmado tacitamente é que, sem a regulamentação do lobby, o que reina é a mais rasteira e escusa corrupção, a troca de favores e a concessão de privilégios nos bastidores, exatamente como era na corte real do Ancien Régime que os burgueses liberais vieram a derrubar no final do século XVIII.
Desta maneira, não faltam nos países capitalistas mais ricos cadastros de lobistas e consultorias oficiais, listas oficiais de parlamentares que recebem dinheiro de empresas (indicando inclusive o quanto recebem, como na Áustria), além de relações de grupos de interesse estabelecidos e de parlamentares diretamente a eles vinculados. A existência desse tipo de regulamentação e registro pode gerar – mas geram menos do que deveriam – impedimentos em CPIs, acareações e votações de certas pautas, devido ao conflito de interesses. Por exemplo, se determinado parlamentar recebeu muito dinheiro de planos de saúde privado, ele poderia ser impedido de participar de votações sobre o perdão de dívidas do setor. Na Suíça, por exemplo, explicam a legalidade da atividade:
O “lobby” é parte integrante da nossa democracia. […] Por essa razão, durante a elaboração de uma lei, tenta-se a participação de todas as partes envolvidas e de levar em conta todos os interesses em jogo. O “lobbying” pode então ser considerado um meio para integrar todos os interesses e todas as informações que possam servir à tomada de uma decisão, apoiada por uma ampla maioria. (MOMBELLI, 2013)
Assim, para os defensores do capitalismo democrático-liberal, não deveria suscitar surpresa ou desconfiança o enriquecimento de mandatários que intermediam as relações entre empresários e governos. Não se trata apenas de casos notórios de queridinhos como Bill Clinton, Tony Blair ou Gerhard Schröder, ex-líderes dos EUA, Inglaterra e Alemanha respectivamente, mas também, no caso brasileiro, de Serra, Dirceu, Caiado ou Lula. O principal ativo de figuras como essas é o acesso aos meandros do poder, que lhes confere capacidade de mediação entre os interesses privado e público. Este rei sempre esteve nu. É assim que funciona a democracia liberal e é como ela precisa funcionar. Se “[o] mercado é uma democracia em que cada centavo da direito a um voto” diria o guru capitalista von Mises (1951), sua consequência, portanto, também é absolutamente válida: a democracia é um mercado onde cada voto vale um centavo.
O debate para determinar se o lobby é ético, moral ou não, deveria ser externo aos defensores do capitalismo. Só pode ser considerado antiético e imoral o lobismo desavergonhado que os ex-mandatários citados fizeram (e fazem), somente por quem considera que o poder político não deva ser utilizado de acordo com os interesses do poder econômico privado. Assim, se assumirmos o ponto de vista de que no capitalismo democrático o poder econômico não só existe em separado do poder político, como também deve servir para contê-lo, o lobismo torna-se absolutamente compatível com a ética e a moralidade capitalista. Milton Friedman elabora:
A existência de um mercado livre não elimina, evidentemente, a necessidade de um governo. Ao contrário, um governo é essencial para a determinação das “regras do jogo” e um árbitro para interpretar e pôr em vigor as regras estabelecidas. O que o mercado faz é reduzir sensivelmente o número de questões que devem ser decididas por meios políticos – e, por isso, minimizar a extensão em que o governo tem que participar diretamente do jogo.
[…]
Removendo a organização da atividade econômica do controle da autoridade política, o mercado elimina essa fonte de poder coercitivo. Permite, assim, que a força econômica se constitua num controle do poder político, e não num reforço. (1962, p. 21, tradução nossa)
Se o mercado é a força econômica que deve controlar o poder político, é natural que seus defensores estejam eticamente alinhados com o modo com que esse controle se dá: o lobby. A atuação do lobismo parece ultrajante e imoral somente aos olhos de quem não reconhece que o domínio do poder econômico sobre o poder político é, e precisa ser, um dos principais mecanismos de atuação política do “indivíduo” dentro do capitalismo democrático. Pois, se “o mercado garante liberdade econômica” (Friedman, 1962, p. 21), por extensão, seu domínio do poder político também garantiria liberdade política. Essa imoralidade é, em essência, gêmea da própria normalidade da democracia liberal. No entanto, mesmo Friedman ameaça reconhecer o problema que isso pode gerar: “se o
poder econômico é somado ao poder político, a concentração [de poder] se torna praticamente inevitável (ibidem, p. 22). Esta captura do Estado, suas instituições de controle, já é bem conhecida: “com o tempo, os interesses da indústria, mais organizada que o público, vencem. O regulado acaba dominando o seu órgão regulador” (EIZIRIK, 2012). Um artigo do Instituto Mises Brasil reconhece a problemática desta realidade, embora com a surpresa indignada daquele “último a saber”:
Se há uma coisa que empresário gosta é de sair do mar revolto do mercado e boiar na piscina morna da proteção estatal. As opções do cardápio são várias: formar um cartel legal, ganhar um monopólio, assegurar uma verba, um crédito subsidiado, prestar serviços ao estado, veicular publicidade estatal, formar comitês para regular o setor, proibir a concorrência, fechar as fronteiras ao produto estrangeiro, passar políticas de preço mínimo, ser salvo da falência no último minuto, e tantas outras quanto a imaginação dos políticos permitir. (FONSECA, 2015)
Em vista disso, a regulamentação do lobby serve para dar transparência à raiz corrupta da democracia capitalista: o domínio do poder público pelo dinheiro. O lobby legalizado afirma a transformação de jure da democracia em plutonomia (governo dos ricos), de fato. Definitivamente o rei está nu e a “mão invisível” que controla o Estado está exposta para quem queira ver. Isso, obviamente, nos países capitalistas onde o lobby é mais transparente. Por aqui, tudo isso não passa de uma ficção ou um devir; tratado como ilegal e alienígena à práxis política, a relação entre o poder político e o capital é ainda pintada como as cores românticas e ingênuas de um José de Alencar.
As obscuras relações que a Operação Lava-Jato tem desvendado revelam simplesmente todo o aparato necessário para tentar dar ares de legalidade ao domínio dos empresários num país capitalista onde o lobby privado é ilegal e desregulamentado. Consultorias “genéricas”, patrocínios de palestras e viagens de figurões, doações legais de campanha como barganha, “agrados” para intermediadores e laranjas, sobrepreço em contratos, são os tipos de artimanhas “legais” para garantir o que já é sabido em todas as democracias capitalistas do mundo: quem tem o poder econômico precisa ter o poder político.
E é neste ponto que se revelam a esquizofrenia das cabeças pensantes por trás da Lava-Jato e também a utopia dos liberais hoje a respeito do capitalismo democrático brasileiro. Os esquizofrênicos acreditam ser possível extirpar o lobby empresarial do arcabouço legal e constitucional do capitalismo, enquanto a utopia crê ser possível fundar um governo legitimamente democrático no qual o lobby das corporações seja legalizado, mas que de alguma maneira não domine por completo o Estado em prejuízo da maioria. Os esquizofrênicos só se realizariam num regime proto-fascista em que se assume que o Estado deva dominar as decisões do capitalismo, ilusoriamente o fazendo em benefício de todos. Daí o temor que Azevedo, um inegável capitalista liberal, tenha dos caminhos que a Lava-Jato possa estar tomando. E no caso dos liberais, admite-se que o poder político deva se submeter por completo ao poder econômico, instaurando-se uma corporatocracia (ou uma plutonomia) – o que, para os que consideram o mercado mesmo uma “neutra representação democrática da vontade do consumidor”, não seria problema algum, mas algo até desejável.
Assim, a Lava-Jato permanece como ponto fora da curva no mundo democrático-liberal. Na sanha antipetista que a operação consolida, a direita brasileira parece estar viabilizando o sonho ingênuo da esquerda radical: criminalização completa do lobby empresarial dentro de um país capitalista! Com toda a campanha midiática em prol da demonização das doações de campanha, não é surpresa que, mesmo com todo o dinheiro que os partidos antipetistas recebam, quase 75% dos brasileiros estejam contra o financiamento privado de campanha. E que mesmo entre manifestantes antipetistas recentemente nas ruas, o número seja semelhante: entre 70 e 75%.
Se a Operação Lava-Jato tivesse sido montada por “juízes esquerdistas” com a mesma finalidade e gerando o mesmo tipo de consenso – isto é, prender grandes empresários que doam para partidos em troca de favores estatais e criminalizando doações de campanha e lobbies empresariais como compra de favores estatais (que de fato são) – dificilmente seria exaltada pela direita do momento e certamente entraria nas páginas dos mais radicais blogs revolucionários como sinal de que o Golpe Comunista chegou! Nesse cenário, a caça generalizada a empresas que trocam favores e dinheiro com o governo provavelmente geraria enorme temor nos mesmos que hoje a aclamam: a operação seria tomada como uma campanha de “caça a empresários”, usando o pretexto de “caça à corrupção dos lobbies” para atacar a propriedade privada nacional! A Lava-Jato estaria instaurando um ”terror republicano contra o direito político dos empresários”. Poderiam até acusar a justiça rápida, dura e implacável de Sérgio Moro exatamente como um paralelo tupiniquim das ações de Robespierre: “O Terror não é nada senão a veloz, severa e inflexível justiça” (ROBESPIERRE, 1794, tradução nossa).
Para além da ficção, a completa ausência de paradigmas legais sólidos para que o Capital tenha segurança jurídica para dominar o parlamento a seu favor, como o faz especialmente nos países ausentes de tradição trabalhista, traz à tona o nosso mais importante déficit liberal-republicano: o capitalista brasileiro está sujeito à vontade personalista dos próprios agentes políticos que dominam o Estado. Estes que determinam se sua contribuição política é legal ou não.
Não é por acaso que o número de cargos nomeados aqui seja estarrecedor em todos os níveis de poder: é a maneira mais eficaz de o poder político barganhar o seu quinhão com o poder econômico, sempre emulando o formato patrimonialista e clientelista do Estado capitalista Ancien Régime e, também, do capitalista aparelhar os agentes fiscalizadores de seu próprio setor produtivo. “Aos amigos tudo. Aos inimigos: a lei”. Fato este já apontado inclusive por antipetistas de carteirinha como Reinaldo Azevedo:
Claro que a ideia [de restringir doações privadas de campanha], declarada ou não, era não retirar o poder discricionário dos burocratas e políticos sobre a decisão de quem ganharia o direito de fazer a obra. (AZEVEDO, 2015).
Não é de espantar que a lógica desbaratada na Operação Lava-Jato se encontra em uma série de casos anteriores, sob praticamente qualquer força política com algum domínio do Estado, desde a ditadura civil-militar e sua relação com empreiteiras (CAMPOS, 2014) e empresariado (MIROW, 1977), até Eduardo Cunha – Planos de Saúde, passando pela promiscuidade do caso PSDB – Alstom nos metros de São Paulo, ou da Delta-Cavendish-PMDB em obras no Rio de Janeiro, e não menos importante, no óbvio prejuízo à Petrobrás causado pelo lobby empresarial tocado por PT, PMDB e PP principalmente. O próprio empresário Ricardo Semler, psdebista, já denunciou como era a situação em anos anterior. E mais além, quem poderia dizer seguramente que as doações privadas dos bancos não influenciam sua relação com o Estado? Não poderiam em parte explicar a massacrante política de juros que, ano a ano, dá lucros recordes apenas ao setor financeiro?
Portanto, o sonho ingênuo da esquerda radical pode se tornar um pesadelo de retrocesso. Para permanecer o poder personalista, patrimonialista e discricionário da aristocracia parlamentar que temos em vigência, a Lava-Jato precisa perseguir seletivamente. No caso o PT e seus aliados momentâneos no empresariado precisam ser sacrificados num festival de cinismo e desvios processuais. Para não ruir perigosamente a própria lógica da democracia liberal, a Lava Jato jamais poderá denunciar radicalmente a dinâmica entre doações de campanha e obras estatais. O lobby é
condição sine qua non do funcionamento de uma democracia-mercado, e o poder político pode – e deve – estar à venda. E, por não poder ser genaralizada e flertar com um proto-fascismo seletivo, a Lava-Jato caminhará para reforçar o poder esquizofrênico do capitalismo personalista brasileiro: “sim, o empresariado pode dominar o Estado, mas apenas nas condições que os políticos que o controlam de fato querem”.
E aos petistas que ainda resistem cabe uma escolha de Sofia: admitir que seus líderes estão igualmente inseridos na imoralidade lobista do capitalismo-liberal como todos os partidos, abrindo mão definitivamente de seu discurso “transformador”, mas com isso lutar pela legalização dos lobbies na esperança de absolver suas lideranças. Ou reafirmar o incerto e arcaico caráter discricionário eAncien Regime na relação entre poder político e poder econômico, defendendo que estão sendo perseguidos pela “elite” apenas por estarem dando um “rumo desenvolvimentista” ao capitalismo nacional ao alinhar grandes empresários com o “interesse do povo” que supostamente representariam. Ambas escolhas ideologicamente terríveis.
*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve mensalmente para Pragmatismo Politico.
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