O ano de 1910 entrou para a história do país por várias razões. Em novembro, ocorreu o levante dos marinheiros brasileiros que ficou conhecido como a Revolta da Chibata. Cansados de receber castigos corporais, os marinheiros, muitos deles negros descendentes de ex-escravos, buscaram dar um basta à prática, que lembrava mais o Brasil escravocrata que a nação republicana que vinha tentando se construir desde 1889. Em viagem para a Inglaterra, onde aprenderam a manobrar os mais poderosos navios da esquadra nacional, os marinheiros brasileiros tomaram conhecimento do cotidiano da Marinha inglesa. Segundo o jornalista Fernando Granato,
[...] na Inglaterra, os marinheiros se depararam com marinheiros já mais evoluídos, eles já tinham passado por tudo o que os brasileiros estavam passando, eles já tinham abolido a chibata, e eles conhecem uma Marinha mais politizada, e foram tomando conhecimento do que estavam passando aqui, e foram germinando a revolta que se aproximava. Nesta viagem à Inglaterra eles planejaram tudo que aconteceria depois.2
Por alguns dias, os revoltosos apontaram os canhões para a então capital do país, a cidade do Rio de Janeiro, e ameaçaram bombardeá-la caso não lhes fosse concedida anistia pela revolta e pelo fim dos castigos corporais. Não sem grandes debates no Parlamento, a classe política concordou com os termos impostos pelos marinheiros. Algum tempo depois, no entanto, houve uma brutal perseguição aos marinheiros, que, sob pretextos diversos, foram presos, torturados e mesmo mortos.3
O ano de 1910 também foi marcado pela eleição para a Presidência da República. Em disputa, duas chapas com propostas claramente diversas, algo inédito no país. Naquele período, vivíamos a chamada “República do Café com Leite”, estabelecida nos primeiros anos após o fim do período monárquico (1889). Por esse mecanismo, políticos de São Paulo e Minas Gerais foram se alternando no poder, com raros casos de ruptura. Em 1910 foi um dos momentos em que a aliança balançou. De um lado, o militar gaúcho Hermes da Fonseca, apoiado por Nilo Peçanha, vice-presidente que havia assumido a Presidência após a morte de Afonso Pena, pelo Rio Grande do Sul e por Minas Gerais. Seu oponente foi o baiano Rui Barbosa, que angariou o apoio de São Paulo, de setores do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco.
Hermes da Fonseca representava um projeto vinculado às ideias da oligarquia rural e da máquina estatal. Rui Barbosa, ainda que também um representante da elite do país, empreendeu uma candidatura com ares de renovação. Apresentava-se como um modernizador favorável à industrialização e à imigração. Barbosa foi, ao longo de boa parte da República Velha (1894-1930), um ícone nacional no sentido da eloquência e da cultura.
Foi a primeira vez em que se viu uma eleição na qual o chamado corpo a corpo com o eleitor se tornou importante. Rui Barbosa, em especial, realizou uma campanha semelhante às que hoje vemos, tendo viajado para vários estados e realizado comícios que concentravam significativas audiências. Nas maiores cidades do país, a discussão política tomou conta de cafés e livrarias, espaços em que a elite eleitora dedicava tempo às questões de Estado.4
O eleitorado era reduzido. Após o país ter alcançado, no terceiro quarto do século XIX, um eleitorado que chegava a quase 15% da população, a República não conseguia alcançar os 5%, muito em função das restrições impostas, ainda no período imperial, pela Lei Saraiva, que retirou dos analfabetos (imensa maioria do país) a possibilidade de votar. Os patamares próximos a 15% só voltariam a ocorrer na década de 1940.
O resultado da eleição trouxe a vitória de Hermes da Fonseca. É importante lembrar que as eleições eram organizadas, em grande parte, pelo Poder Executivo, que delegava apenas algumas funções aos juízes. Como foi praxe na história da política até então, a eleição de Hermes ocorreu à custa de fraude – ajudava, nesse sentido, o fato de o eleito ser apoiado pelo então chefe do Executivo federal, Nilo Peçanha. Algumas das ideias postas naquela campanha, aliás, diziam respeito à facilidade com que os resultados eleitorais eram adulterados5, realidade que só seria enfrentada seriamente após a Revolução de 1930, com a criação da Justiça Eleitoral e do primeiro Código Eleitoral brasileiro.
Tanto o acirramento das tensões ao longo do pleito presidencial quanto a eclosão da Revolta da Chibata evidenciaram um país que ainda buscava um equilíbrio socioeconômico e político. Nos dois episódios, ficam claras as relações arcaicas mantidas entre Estado e população e o enorme déficit político presente na sociedade brasileira naquele início de século XX – poucos podiam participar da vida política do país e, entre os que podiam, poucos o faziam.
1 Graduado em História. Atuou na Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre/RS e como professor na rede pública de ensino do Rio Grande do Sul. Atualmente, é servidor do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul.
2 GRANATO, Fernando. O negro na chibata. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
3 Entrevista concedida pelo historiador Antônio Barbosa ao programa 100 Anos da Revolta da Chibata, da RádioSenado. Disponível em: <http://migre.me/fE7c0>. Acesso em: 1º ago. 2013.
4 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. História das eleições no Brasil. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/hotSites/biblioteca/historia_das_eleicoes/capitulos/eleitor/eleitor.htm>. Acesso em: 31 jul. 2013.
5 Entrevista concedia pelo professor de história André Ramos dos Santos Filho ao programa Memória Eleitoral, da Radioweb TRE Gaúcho, em 4.7.2013. Disponível em: <http://www.tre-rs.jus.br/index.php?nodo=13605>. Acesso em: 31 jul. 2013.