No ano passado, mais de três mil brasileiros foram contratados para trabalhar nos transatlânticos que navegaram pelo país durante o verão. Além da questão financeira, a oportunidade de viajar e conhecer novos lugares é um dos motivos que mais atraem as pessoas para este tipo de emprego.
A vida de um tripulante, porém, está longe de ser fácil. O dia a dia dentro de um navio é marcado por trabalho duro, relações difíceis com os chefes e poucas horas de folga. Quem já esteve (como hóspede) em um cruzeiro pode dizer: muitos dos funcionários da embarcação parecem seres onipresentes, servindo turistas de manhã, no almoço, à tarde e à noite.
Há também, é lógico, o lado bom de ter um emprego em alto-mar: como tripulante, é possível economizar dinheiro (os funcionários não pagam alimentação, hospedagem ou transporte), conhecer destinos paradisíacos e participar de animadas "festas de cabine" - que, apesar de proibidas em boa parte dos transatlânticos, são realizadas rotineiramente a bordo.
Todos os ex-funcionários de cruzeiros com os quais o UOL falou, entretanto, concordaram em um ponto: há sempre um momento em que dá vontade de largar a cansativa rotina marítima e voltar para casa. Mas, curiosamente, poucos o fazem.
Navegando com Schettino
Entre 2009 e 2011, o estudante paulista Ivan Muniz, 24 anos, trabalhou em diversos cruzeiros da companhia Costa. Sempre desempenhando a função de garçom de bar, ele visitou mais de 40 portos ao redor do mundo e, por pouco, escapou do naufrágio do navio Concordia ocorrido em janeiro de 2012.
"Trabalhei no Concordia três meses antes do acidente. Tenho muitos conhecidos que estavam no navio quando ele afundou, e uma amiga peruana morreu na tragédia", relembra Ivan. "Lembro de ter cruzado com o capitão Schettino algumas vezes. Ele era bem antipático, não dava papo para ninguém".
Ivan conta que chegava a trabalhar mais de 11 horas por dia. "Em cruzeiros no Brasil, minha carga horária atingia quase 15 horas diárias. Os brasileiros bebem muito a bordo e eu tinha que estar lá para servi-los". Além de um salário mensal de 800 euros, ele ganhava 10% do valor de cada bebida vendida, e raramente folgava um dia inteiro. "Eu conseguia folgar apenas algumas horas e, se coincidia de o navio estar atracado, descia para conhecer a cidade".
Muitos de seus chefes eram rudes com os subalternos. "Tive supervisores filipinos e hondurenhos que, por alguma razão, não gostavam muito de brasileiros. Vi chefes humilhando funcionários com xingamentos e até pensei em pedir demissão por causa de um superior que não gostava de mim. Cheguei a ouvir frases como 'você é brasileiro e não é bem-vindo aqui'".
Ivan admite, porém, que alguns de seus compatriotas não eram dedicados no trabalho e frequentemente infringiam as regras do cruzeiro. "Uma vez, meu companheiro de quarto chegou à nossa cabine às 7 da manhã com uma passageira. Eu estava saindo para meu turno e depois descobri que um segurança do navio (quase todos eles são ex-militares israelenses e uma de suas funções é vigiar a tripulação) havia invadido o quarto e pego os dois no flagra".
Mesmo percebendo que havia tensões entre as diferentes nacionalidades dentro do navio, Ivan afirma que festas da tripulação eram frequentes. "O pessoal deixava o quarto escuro, fazia as luzes dos coletes salva-vidas começarem a piscar e improvisavam uma espécie de discoteca. Era um momento bem divertido para todo mundo".
Sacrifícios e recompensas
Para o gerente de produto e operações portuárias da Royal Caribbean na América Latina, Diego Dantas, as dificuldades enfrentadas por brasileiros dentro de transatlânticos são perfeitamente contornáveis. "Os brasileiros tendem a se destacar em muitos serviços a bordo, pois são simpáticos, flexíveis e comunicativos, e isso às vezes gera conflitos com outras nacionalidades", diz ele. "E é normal que haja choque culturais dentro do navio. Muitas vezes os brasileiros não entendem o tom das ordens dadas por chefes estrangeiros e acabam ficando ofendidos".
Diego também acha que, no Brasil, as pessoas já sabem mais sobre os detalhes da vida a bordo. "Antes, quando o mercado de cruzeiros era pouco conhecido por aqui, as pessoas pensavam que trabalhar em navio era como tirar férias remuneradas. É lógico que acabavam se decepcionando, pois a rotina em alto-mar pode ser bem cansativa".
Hoje, segundo ele, os brasileiros já entram nas embarcações mais preparados para o trabalho que os aguarda. "Muitos dos tripulantes que vêm do Brasil ainda encaram o serviço apenas como uma aventura, mas aqueles que querem fazer carreira e trabalham para isso têm grandes chances de subir de cargo".
Certos postos dentro dos transatlânticos, vale lembrar, têm mais privilégios que outros. Camareiras e garçons são, de acordo com Diego, alguns dos cargos mais pesados. Outros, como funções de entretenimento, de cassino e de lojas, permitem que o empregado tenha mais tempo de folga e possa conhecer o portos visitados pelos navios.
Balé e joias
A paulista Leticia Assis, por exemplo, trabalhou como bailarina em cruzeiros pela Europa e Ásia entre 2006 e 2009. "Eu fazia shows durante a noite, com duração de duas horas, cinco vezes por semana. Era uma função que tinha tantos privilégios como os oficiais. Outros tripulantes trabalhavam muito mais do que eu", conta ela. "Meu trabalho era fácil, não tinha muito do que reclamar".
Letícia ganhava 1.100 dólares por mês e passou alguns sustos durante sua viagem. "Em uma ocasião, alguém tocou o alarme de abandonar o navio às 3 da manha. Pensei que estávamos afundando, foi desespero total. Apesar de todo o treinamento que recebemos, ficamos sem reação. Por sorte, era alarme falso".
Outro emprego muito cobiçado dentro dos cruzeiros foi exercido pela paulista Deborah Pinheiro: entre 2012 e 2013, ela trabalhou em uma loja de joias do navio Monarch of the Seas, da Royal Caribbean. "Quis ter uma experiência de vida diferente e conhecer novos lugares", diz ela. "Por seis meses, fiz uma rota entre a Flórida e as Bahamas. Gostei muito do que vivi, as instalações reservadas aos empregados eram confortáveis, mas a rotina era difícil: você tem hora pra acordar, mas não tem hora pra dormir. A cada dia o trabalho termina em um horário diferente, tudo depende de como estão indo as vendas".
Deborah chegou a fazer turnos de 15 horas por dia, quebrados por uma pausa de 45 minutos para o almoço. Ela tinha que estar na loja todos os dias da semana. "Era engraçada a reação dos passageiros quando terminávamos de trabalhar às 2 da manhã e no dia seguinte lá estavamos nós novamente às 8 e meia da manhã abrindo as lojas. Eles olhavam incrédulos e diziam: 'Nossa, você de novo'? 'Vocês não descansam nunca'"?
Deborah conseguia tirar uma média de 1.200 dólares por mês, entre salário e comissões e, apesar de quase haver desistido várias vezes do trabalho, afirma que indicaria a experiência para quem cogita labutar em alto-mar.
A paranaense Micheli Souza segue a mesma linha: mesmo com diploma universitário, ela foi camareira em diversos cruzeiros no mundo. "Trabalhava de segunda a segunda, às vezes em turnos de 15 horas, e dificilmente tirava mais do que 900 dólares por mês. Mas havia momentos bons, em que fazíamos festa com a tripulação e podíamos descer do navio para conhecer um lugar novo. E é impressionante como ganhamos uma grande auto-confiança, após vencer os desafios do dia a dia".
Hoje, a maioria das pessoas no Brasil conseguem trabalho em transatlânticos através de empresas recrutadoras. No processo, têm de pagar por cursos de capacitação (que custam algumas centenas de reais) e também para tirar o certificado STCW, que comprova que o tripulante está apto a trabalhar em cruzeiros. O documento chega a custar R$ 850.
Abaixo, algumas agências que realizam recrutamento e capacitação para trabalhos em cruzeiros: