Dois fatos políticos recentes de extrema relevância deixaram claro, mais uma vez, o papel das instituições no aprofundamento da crise em que o país está mergulhado. Um deles deixou o país em suspenso no domingo passado, 8 de julho, diante da expectativa da libertação de Lula, e expôs manobras inéditas do aparelho judiciário para impedir o cumprimento do habeas corpus. O outro, embora de menor repercussão, é também de enorme gravidade, porque evidencia a captura do poder político pelo poder religioso: foi a reunião que o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, realizou com pastores de sua igreja na sede da prefeitura, orientando-os a falar “com a Márcia”, “com o Marquinhos” ou com “o doutor Milton” para agilizarem o atendimento a demandas de seu interesse.
O primeiro caso recebeu da mídia tradicional o costumeiro tratamento adotado em pautas que envolvem o ex-presidente, de modo que quem quisesse ter noção do escândalo precisou, como de hábito, recorrer a fontes alternativas. O outro foi mais um capítulo do enfrentamento entre o Grupo Globo e a Igreja Universal e é bem ilustrativo dos limites do poder de uma grande corporação de mídia diante de uma força politicamente equivalente e das ramificações dessa disputa no ambiente parlamentar.
Lula livre, Lula preso: um domingo de alta tensão
A notícia de que o desembargador Rogério Favreto havia determinado a imediata soltura do ex-presidente Lula abalou o domingo logo de manhã. Nas redes sociais, militantes e gente de esquerda sem filiação partidária comemoravam antecipadamente o que acreditavam ser favas contadas, porque, afinal, como se costuma dizer, decisão judicial não se discute: cumpre-se.
Não neste caso, e todas as manobras que produziram o suspense ao longo daquele dia levaram os mais respeitados juristas do país a dizer que nem nos tempos da ditadura viram algo parecido. Também surpreendida, a grande imprensa tratou de cerrar fileiras com seus aliados de sempre no Judiciário e desqualificar o “plantonista vinculado ao PT” que atrapalhou o plantão morno dos jornalistas vinculados sabe-se muito bem a quê.
Os deputados que entraram com pedido de habeas corpus para Lula certamente não acreditavam que teriam êxito: manter preso o líder das pesquisas de intenção de voto é questão de segurança nacional, como o comandante do Exército, general Villas Boas, deu a entender há cerca de três meses nos dois famosos tuítes divulgados no encerramento do Jornal Nacional, na véspera de um julgamento decisivo no STF – justamente, de um habeas corpus preventivo para Lula, dias antes de sua prisão.
Ao insistirem nessa medida, escolhendo o dia em que o único desembargador que lhes era favorável estaria de plantão, os parlamentares conseguiram criar um fato político fundamental, de repercussão internacional, e forçar os membros do Judiciário envolvidos com a causa a agir de maneira flagrantemente ilegal. Foi o que o advogado e procurador aposentado Roberto Tardelli chamou de “hospício jurídico”, ao detalhar a balbúrdia que se instalou nesse meio e as inúmeras irregularidades cometidas, num texto que pode ser lido aqui.
Os vídeos e notas que circularam na internet ao longo do dia, ora anunciando a iminente libertação de Lula, ora protestando contra o descumprimento da ordem judicial, não chegaram, porém, a produzir grande efeito mobilizador, o que indica não apenas a desproporcionalidade do poder de comunicação entre esses meios e o da mídia tradicional mas também a eficácia da campanha antipetista e antilulista empreendida desde o “mensalão”, em 2005: a indignação diante da violência contra Lula só atinge quem está convencido dela e tem consciência do alcance da ilegalidade que ocorreu nesse episódio. Os demais, pelo contrário, aplaudem qualquer iniciativa para manter Lula preso, sem perceberem – em parte porque essa mídia não diz – as consequências de medidas que atropelam os procedimentos da democracia formal. São esses que constituem, tradicionalmente, a massa que alimenta o fascismo.
E, se o negócio é despolitizar, nada como fazer como o Extra, que tascou uma manchete debochada fazendo trocadilho com o lema histórico da primeira campanha de Lula para a presidência e, como todo jornal popular, apelou a analogias rasteiras com o futebol, como se fossem situações comparáveis, pois o que importa é o escárnio, a ridicularização do “político”, ainda mais quando esse político está no lugar destinado aos pobres: em cana. Então, aproveitando o período da Copa e a inédita utilização do recurso de vídeo para verificar lances duvidosos e decisivos, o jornal publicou a foto de um árbitro a consultar o VAR entre duas de Lula – sorridente/solto, contrariado/preso – para rever a decisão “errada” de libertá-lo.
Crivella: “Liga pra Márcia”
Quando se trata de atacar o fundamentalismo evangélico, entretanto, o Grupo Globo investe no melhor jornalismo. Foi assim com a reportagem sobre a reunião que o prefeito do Rio promoveu com cerca de 170 pastores de sua igreja. Pode-se dizer que o que ocorreu ali é uma expressão de clientelismo típico da nossa política, o que é evidentemente antirrepublicano – mas desde quando somos mesmo uma República? –, porém o caso é mais grave por misturar política e religião e, pior, submeter uma à outra.
Dias depois o repórter Bruno Abbud relataria como surgiu a pauta:
“Duas imagens de tela de celular chegaram, via whatsapp, à colunista Berenice Seara, do jornal Extra, um dos três títulos da redação integrada que reúne também O Globo e a revista Época, no final da tarde de terça-feira. Anunciavam que um evento intitulado Café da Comunhão aconteceria no dia seguinte. (…)O texto não deixava espaço a sutilezas: era uma oportunidade para que as lideranças apresentassem seus pleitos para que a máquina da prefeitura entrasse em ação, de acordo com aquela pauta de pedidos. ‘Na ocasião ouviremos tudo o que a prefeitura tem a nos oferecer, inclusive instalação de creches’, dizia um trecho. ‘Depois levaremos os pré-candidatos a nossas igrejas’”.
Apesar do empenho, diz o repórter, Berenice não conseguiu confirmar o encontro, que não constava da agenda oficial. Tampouco deveria ser ela a tentar checar presencialmente, por ser conhecida no meio político carioca. Por isso o escalado foi Bruno, paulista recém-chegado ao Rio. Ele entrou como se fosse um dos interessados em participar da reunião e gravou em áudio tudo o que se passou ali. Reproduziu trechos da fala de Crivella, como estes:
“É muito importante os irmãos ficarem com o telefone da Márcia e do Marquinhos, porque, às vezes, ocorre um imprevisto. Se houver caso de emergência, liga. Liga para a Márcia e ela liga para mim, para o Marquinhos… É importante você ter um canal para poder socorrer num momento de emergência”. (Sobre o encaminhamento de pessoas para operação de catarata e varizes).“…se você não falar com o doutor Milton, esse processo pode demorar e demorar. Nós temos de aproveitar que Deus nos deu a oportunidade de estar na prefeitura para esses processos andarem” (Sobre processos de isenção de IPTU, a que as igrejas têm legalmente direito).
Mas não, isso não tem nada a ver com corrupção:
“Só o povo evangélico pode mudar esse país. Entre nós não há corrupção. A gente recebe o dinheiro do povo e faz a casa de Deus”.“O que nós precisamos é ter uma política que faça com que o país encontre o caminho de seu progresso e se liberte da corrupção. Nós somos a esperança. Pegamos a oferta do povo, levamos ao escritório, contamos tudo e construímos igrejas. É esse Brasil evangélico que vai dar jeito na pátria”.
A reportagem foi publicada no dia 6 de julho e repercutiu à noite no Jornal Nacional, que também expôs trechos do discurso do prefeito e entrevistou o procurador geral de justiça do Rio, que via nas gravações evidências de privilégio a um grupo de pessoas e, consequentemente, o desrespeito ao princípio constitucional da impessoalidade e do interesse público, além da violação ao princípio do Estado laico.
No mesmo dia, Crivella reagiria acusando a mídia – isto é, a Globo – de ser tendenciosa e de manifestar intolerância religiosa. Dias depois, às vésperas da reunião extraordinária da Câmara que discutiria o seu impeachment, deu longa entrevista ao SBT-Rio, que vai ao ar na hora do almoço, e negou que a orientação para “falar com a Márcia” seria privilegiar os fiéis e furar a fila de cirurgias: seria apenas uma forma de orientar os pastores a preencher o sistema que cadastra as pessoas para atendimento. E, como a melhor defesa é o ataque, procurou inverter o jogo e apontar o que seriam os objetivos ocultos dessas acusações.
A tática é perfeita: repetir, repetir e repetir – cinco vezes, em 22 minutos de entrevista – que “todo mundo sabe” que a Globo “é inimiga jurada dos evangélicos”, “é contra a família”, “a favor do aborto”, “do incesto” – que ele pronuncia “incêsto” –, “do adultério”, que “defende outro tipo de família” e “prega isso nas novelas”, que “isso é um conceito consagrado no meio dos evangélicos”, que “por isso faz campanha contra o prefeito”, “que não é contra o prefeito, é contra os evangélicos do Brasil” e que “tudo que a Globo puder distorcer, ela vai”. E também aproveitou para lembrar o que é muito verdadeiro: o comprometimento da Globo com governos corruptos do PMDB, como os dois mandatos de Sérgio Cabral, hoje preso.
Em suma, Crivella falou para seu público, numa estratégia coerente com o projeto de poder da Igreja Universal, estabelecido há décadas, e que vem obtendo crescente sucesso. Boas reportagens publicadas às vésperas da eleição municipal de 2016, uma da Veja – apesar da capa lamentável, que critiquei aqui –, mostrando seus métodos para recuperar um terreno de sua igreja, em tempos idos, outra do Globo, sobre sua atividade como missionário em países africanos no fim do século passado, na qual atacava os “espíritos imundos” supostamente abrigados por outras religiões, todas “demoníacas”, e que se revelavam na “conduta maligna” dos homossexuais –, boas reportagens como essas não fizeram nem cosquinha no desempenho do candidato, que venceu com folga o segundo turno. Isso deveria dizer algo para os que insistem em considerar absoluto o poder da mídia, sobretudo da Globo, na vida política: não é bem assim, e não só porque candidatos combatidos por ela venceram eleições em outras épocas – como Brizola, Lula e Dilma –, mas porque, nesse caso, o maior poder midiático enfrenta outro que também investe pesadamente na área e tem um lastro fundamental na massa de crentes a quem promete cura e prosperidade.
Falando para esses milhões de convertidos, Crivella encerrou sua entrevista ao SBT valorizando a posição de vítima: “Várias vezes tentaram o impeachment. Nunca conseguiram as assinaturas. Na vida pública é assim mesmo: a gente é supliciado, a gente sofre, tudo que a gente faz de bom é mal interpretado, mas nós não vamos desanimar. Nós vamos continuar e eu tenho certeza de que, no final, vai ter valido cada luta, cada sacrifício e cada lágrima”.
Por ora tem valido mesmo: mais uma vez o prefeito foi vitorioso. Na sessão da Câmara convocada para discutir a autorização de investigá-lo, seus aliados repetiram os argumentos sobre a família, o aborto, a “ideologia de gênero”, a campanha da mídia – houve mesmo quem acusasse a Globo de ser de esquerda – e derrotaram a proposta por 29 votos a 16. Restam agora dois pedidos de abertura de CPI, uma delas chamada de “CPI da Márcia”, que serão apreciados pela mesa diretora.
O resultado é previsível, sobretudo porque o poder de mobilização dos evangélicos é muito superior ao dos seus opositores.
Com o aparelho judiciário manipulado da maneira como foi no mais recente episódio envolvendo a figura de Lula – não bastassem todas as evidências anteriores, especialmente desde que Moro autorizou a divulgação da gravação ilegal de uma conversa entre Lula e Dilma –, com a representação parlamentar dominada pelas forças mais retrógradas do país, com uma mídia que age partidariamente há tanto tempo, cultivar esperanças na via institucional para sair dessa crise não parece muito lógico. Alternativas sempre existem, mas para se efetivarem seria preciso elaborar estratégias, e essas, aparentemente, não estão no horizonte.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora aposentada da UFF, pesquisadora do ObjETHOS
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