A história de Janaína Aparecida Quirino veio à público no último sábado (9), em coluna do professor de direito constitucional da FGV-SP Oscar Vilhena Vieira no jornal Folha de S. Paulo. Ela tem 36 anos, seis filhos e está presa há sete meses por tráfico de drogas. Mas seu caso ganhou repercussão pela controversa decisão da Justiça ao acatar um pedido do Ministério Público de São Paulo para que ela passasse por um procedimento de esterilização via laqueadura tubária "mesmo contra sua vontade".
A Prefeitura de Mococa (SP), condenada a realizar o procedimento na moradora da cidade, entrou com recurso contra a decisão, que foi aceito pelos desembargadores que analisaram o caso na segunda instância. Mas era tarde demais. A cirurgia irreversível já havia acontecido e o corpo de Janaína tinha sido violado com base em uma decisão judicial em processo que, para muitos juristas, não poderia sequer ter existido.
Mas, por que o processo existiu, então? Em entrevista ao HuffPost Brasil, Clara Masiero, coordenadora adjunta do departamento de cursos do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e Paula Machado Souza, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo respondem esta questão.
O processo e a laqueadura contra própria vontade
No seu pedido de liminar, emitido em maio do ano passado, o promotor de Justiça Frederico Liserre Barruffini afirmou que Janaína, à época mãe de cinco filhos, era"hipossuficiente", apresentava "grave quadro de dependência química, sendo usuária de álcool e outras substâncias entorpecentes" e , em função disso, não havia dúvidas de que "somente a realização de laqueadura tubária na requerida será eficaz para salvaguardar a sua vida, a sua integridade física e a de eventuais rebentos que poderiam vir a nascer".
O promotor ponderou que Janaína, em determinados momentos, "manifesta vontade em realizar o procedimento de esterilização e, em outros demonstra "desinteresse ao não aderir aos tratamentos e ao descumprir as mais simples orientações da rede protetiva". Ainda assim, pediu que a prefeitura da cidade fizesse o procedimento mesmo contra a vontade da mãe.
Menos de um mês depois de o Ministério Público entrar com a ação, o juiz Djalma Moreira Gomes Junior concedeu a liminar e condenou o município a realizar o procedimento de esterilização no prazo de 30 dias. O prazo, no entanto, não foi cumprido, porque Janaína estava grávida do seu sexto filho. Em outubro, uma nova sentença foi proferida determinando a execução da laqueadura tubária assim que ocorresse o parto. O procedimento foi feito em fevereiro, quando Janaína já estava presa.
Na sentença de primeiro grau, o juiz Gomes Junior mencionou que Janaína havia confirmado a intenção de se submeter à cirurgia a um psicólogo judicial. Porém, para os desembargadores que avaliaram o recurso, o próprio laudo não deixa de apontar manifestações dela contrárias ao procedimento. "Não é possível extrair a real vontade da requerida, se estava de acordo com o procedimento ou se foi induzida a fazer determinada declaração", escreveu o desembargador Leonel Costa em seu voto contrário à decisão da primeira instância.
De qualquer forma, a esterilização compulsória é impensável.Clara Maziero, coordenadora do IBCCRIM.
"O pedido de que o município fosse compelido a esterilizar pessoa 'mesmo contra a sua vontade' havia, a rigor, de ser indeferido de imediato", reforçou o desembargador Bandeira Lins, presidente da 8º Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo e terceiro juiz que avaliou o caso na segunda instância.
Segundo o promotor do Ministério Público, a ação contra a Prefeitura de Mococa e contra Janaína está baseada na lei nº 9.263, de 1996. Essa lei estabelece uma série de regras para o planejamento familiar no Brasil. É a mesma que determina que a esterilização voluntária só pode ser feita por homens e mulheres maiores de 25 anos de idade ou com pelo menos dois filhos vivos e com consentimento expresso do cônjuge. A manifestação de vontade e o ato cirúrgico devem ser intercalados por um período de 60 dias, durante o qual o interessado deve ser desaconselhado a realizar o procedimento.
"A realização de esterilização tubária da mulher é medida excepcional, somente admissível quando esgotadas as demais vias de tratamento possíveis, dentre elas o tratamento ambulatorial, jamais se admitindo a esterilização involuntária", escreveu o relator do acórdão que acolheu o recurso contrário a decisão da primeira instância, desembargador Paulo Dimas Mascaretti.
A única pessoa que poderia realizar esse pedido era Janaína.Paula Machado Souza, defensora de São Paulo.
"Há toda uma regulamentação em torno do planejamento familiar, que depende do consentimento, evidentemente, além de outros critérios. De qualquer forma, a esterilização compulsória é impensável", afirma a Clara Masiero, coordenadora adjunta do departamento de cursos do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).
Além do ponto de vista jurídico, Clara também avalia o aspecto moral e ético da decisão. "O que o Ministério Público quer dizer com esse pedido? E o que o juiz de primeiro grau quer dizer ao deferi-lo? Será que é uma ideia de esterilização eugênica? Isto é, uma decisão quer evitar que pessoas entendidas por eles como hipossuficientes ou talvez indesejadas, tenham filhos que daqui a pouco seriam também indesejados na sociedade?", questiona.
"Então, o que deveria ter sido feito logo de início? O juiz deveria ter declarado que, por não existir previsão legal para esse tipo de procedimento, ele não poderia ser pedido seja pelo Ministério Público ou qualquer outra instituição. A única pessoa que poderia realizar esse pedido era Janaína", explica a defensora Paula Machado Souza, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo. "Independentemente se ela falou que sim ou que não, o processo não poderia ter existido, a não ser que ela quisesse e entrasse com uma ação", completa.
Direito à defesa e respeito ao grau de jurisdição
Além disso, Janaína não teve o seu direito de defesa respeitado durante o processo. Não há, nos autos, a presença de um advogado ou defensor público. "Ela não fala nos autos. Ela é informada da existência dessa ação, mas não nomeia defensor e não se pronuncia nos autos. E a partir disso nada é feito. Caberia ao juiz encaminhar um defensor público ou um curador, mas nada disso foi assegurado a ela", avalia a jurista Clara Masiero.
Entre a primeira decisão, em junho, e a segunda, em outubro, a Prefeitura de Mococa chegou a pedir outras ações para a situação de Janaína, tal como a indicação de um curador próprio para acompanhar o caso, devido a complexidade do caso e a vulnerabilidade da situação da requerida. Pedidos estes que foram considerados desnecessários na sentença do juiz do primeiro grau.
Embora, na sentença, o juiz afirme que "a situação da requerida Janaína demanda grande atenção, principalmente por seu estado físico", ele a considerou "pessoa capaz, muito embora não possua condições de fornecer os cuidados necessários à futura prole". Em nota atribuída a Gomes Júnior após o caso ter se tornado público, ele afirma que Janaína consentiu com o procedimento, passou por avaliação psicológica e que foi ouvida em "diversas oportunidades".
A decisão pela laqueadura foi revertida ao chegar no segundo grau, mas a cirurgia já havia ocorrido. Para a Clara, isso mostra que, além de não ter tido o direito à defesa respeitado, não foi assegurado a Janaína o duplo grau de jurisdição "Medidas tão apressadas não comportam uma decisão dessa envergadura, que é irreversível", afirma.
A investigação chegou à Câmara dos Deputados
Os desembargadores que avaliaram o caso na segunda instância e acolherem o recurso contra a decisão determinaram a remessa dos autos do processo à Corregedoria Geral da Justiça e à Corregedoria Geral do Ministério Público para que sejam averiguadas as condutas do promotor e do juiz.
O Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou em nota que "o Poder Judiciário paulista não se manifesta sobre processos em andamento". Também em nota enviada à imprensa, o Ministério Público de São Paulo afirma que foi instaurada uma reclamação disciplinar para apurar o caso, ainda que o procedimento médico tenha sido realizado com base em decisão judicial.
Os envolvidos no caso terão de se explicar na Câmara dos Deputados. Nesta quarta-feira (13), a Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Casa aprovou um requerimento para realizar uma audiência pública sobre o tema.
O pedido inclui a presença de Djalma Moreira Gomes Júnior, juiz de direito da Segunda Vara do Foro de Mococa; Frederico Liserre Barruffini, promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo; Mônica Francisco, representante da Rede de Instituições do Borel, Coordenadora do Grupo Arteiras, além de um representante da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, um da Associação Artemis, ONG contra violência doméstica e obstetrícia e de Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito Constitucional da FGV-SP.
"Esta comissão tem a obrigação de ouvir os relatos sobre essa decisão judicial tenebrosa, e debater, de modo mais amplo, o atual cenário de aprofundamento das violações de direitos humanos pelo Poder Judiciário, em especial contra pessoas e grupos sociais em situação de vulnerabilidade social", diz o requerimento apresentado pelo deputado Jean Wyllys (PSol-RJ).
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