Um levantamento inédito mapeou os negócios voltados para as classes C, D e E no Brasil. Se seguir a tendência mundial, o setor tem tudo para crescer
Quando o economista indiano C.K. Prahalad convocou seu séquito a olhar para a base da pirâmide social, o universo corporativo vislumbrou uma nova (e promissora) fonte de riqueza. Prahalad – e seu colega Stuart Hart, da Universidade Cornell – revelou às multinacionais, em 2002, que elas não precisavam ficar reféns dos conhecidos e já saturados mercados das classes endinheiradas. Àquela época, as grandes empresas tinham a sua disposição 4 bilhões de pessoas com uma renda anual de até US$ 1.500: uma população ávida por serviços e produtos que coubessem em seus bolsos. Uma oportunidade como poucas de ganhar dinheiro e, de lambuja, aliviar a pobreza.
Prahalad acabou criticado por se preocupar mais com os dividendos das companhias do que com suas intenções altruístas. Agora, pouco mais de um ano depois de sua morte, um movimento silencioso envolvendo a mesma base da pirâmide propalada por ele começa a ganhar vulto no mundo. Desta vez, porém, os protagonistas da nova onda dizem ter um propósito ainda mais nobre: o de promover impacto social claro e tangível, na tentativa de reduzir a miséria. "Os pequenos empreendedores são mais ágeis e abertos às inovações do que as grandes corporações", afirma Graziella Comini, professora da Universidade de São Paulo (USP) e representante brasileira do Social Enterprise Knowledge Network (Sekn), uma rede de colaboração acadêmica da qual faz parte, entre outros, a Harvard Business School. "Eles têm todas as condições para provocar tais transformações."
Um mapeamento obtido com exclusividade por ÉPOCA dá uma dimensão do tamanho desse universo no Brasil. A pesquisa – desenvolvida pelo braço brasileiro da Aspen Network of Development Entrepreneurs (Ande), um conjunto global de organizações que apoiam pequenas empresas em crescimento em 150 países – elencou pela primeira vez quais são os empreendimentos envolvidos na ambiciosa meta de melhorar a qualidade de vida das classes C, D e E (além de gerar lucro, claro) – os negócios sociais (leia as histórias nas páginas a seguir). O levantamento mostra que já existem nos trópicos fundos de capital de risco dispostos a investir nos negócios com retorno social. E aponta as iniciativas que atuam como molas propulsoras dos empreendedores. Acompanhe o cenário.
O Brasil tem 50 negócios com ambição de promover impactos sociais, 40 organizações dedicadas a desenvolver esses empreendimentos e 14 investidores, entre fundos de capital e doadores, voltados para esse público.Apesar de pequenos, os negócios sociais têm uma abrangência geográfica significativa: 72% atuam fora de seu Estado de origem, e 22% também operam em outros países.O foco dos empreendedores está nas classes D e E, com salários de até cinco salários mínimos. As empresas tradicionais, em sua maioria, estão interessadas na classe C, de maior poder aquisitivo.Os empreendedores dos negócios sociais são experientes. Grande parte já teve uma empresa antes. Oito de cada dez têm curso superior ou pós-graduação.Mais da metade (58%) das organizações que ajudam no desenvolvimento dos negócios não cobra pelo serviço.Os investidores sempre levam em conta o impacto social dos negócios, medido por meio de metodologias internacionais, antes de escolher onde colocar dinheiro.
Mas o que são, afinal, negócios sociais? O mesmo capitalismo capaz de elevar a produção de riquezas no mundo a um patamar jamais imaginado tem se mostrado incapaz de reduzir significativamente a desigualdade entre ricos e pobres. É nesse contexto que emergem os negócios sociais, uma espécie de entidade híbrida entre uma empresa tradicional e uma organização não governamental (ONG).
O conceito de negócio social é relativamente novo. Seu primeiro esboço surgiu no fim do século XX da insatisfação de alguns pensadores que contestavam o sistema econômico em curso. O economista bengali Muhammad Yunus é o dono da abordagem mais radical. Ele criou o modelo das "empresas sociais" (social business, em inglês), novas companhias que têm como prioridade a geração de benefícios sociais, e não lucros e dividendos. Em suas corporações, os acionistas recuperam só o capital investido. Todo resultado gerado é usado para ampliar o alcance ou para melhorar a qualidade do produto ou serviço. O banco de microcrédito fundado por ele, o Grameen Bank, já emprestou cerca de US$ 8 bilhões a mais de 8 milhões de pessoas em Bangladesh.
Embora Yunus tenha alcançado reconhecimento internacional (ele e seu Grameen Bank receberam o Prêmio Nobel da Paz em 2006), seu modelo está longe de ser unanimidade. A noção de que o lucro precisa estar dissociado do impacto social desagrada à maioria. Primeiro, pela dificuldade de reproduzir essas experiências em diferentes realidades. Segundo, porque são raros os casos de empreendimentos que ganham escala. Por isso mesmo, o conceito vem evoluindo. Há centenas de casos de negócios no mundo operando com impacto social e retorno financeiro. Um exemplo de sucesso é o SKS Microfinance, o maior banco de microcrédito da Índia. Em 2010, o SKS abriu capital na Bolsa de Valores, com a mesma tarefa de empresas tradicionais: dar resultados e satisfação aos acionistas.
A pesquisa realizada pela Ande Polo Brasil adotou uma visão menos utópica que a de Yunus. "Negócios sociais são mecanismos financeiros que oferecem produtos ou serviços, de qualidade e a preços acessíveis, para a baixa renda", afirma Rob Parkinson, coordenador da Ande. "Ou negócios que incluam a população da base da pirâmide na cadeia de valor." O levantamento considerou apenas pequenas e microempresas (com receita anual de até R$ 16 milhões). Outro critério foi sua sustentabilidade financeira: só entraram os negócios estruturados para ser economicamente viáveis. O mapeamento, uma parceria com a Fundação Avina e a Potencia Ventures, instituição criada para oferecer capital financeiro e intelectual aos negócios voltados para a redução da pobreza, levou seis meses para ser concluído. Sua execução ficou a cargo da empresa de pesquisa Plano CDE.
Não falta público para esse novo tipo de empreendimento. Segundo estimativas do governo, o Brasil tem hoje 16 milhões de habitantes (ou 8,5% de sua população) em situação de extrema pobreza. No mundo todo, segundo o Banco Mundial, mais de 2,5 bilhões sobrevivem com menos de US$ 2 por dia. "Temos problemas gravíssimos que os governos, as ONGs e as empresas tradicionais não conseguem resolver", afirma Vivianne Naigeborin, assessora estratégica da Potencia Ventures. "Com o levantamento, queremos estimular os negócios a olhar para o público C, D e E." O mapeamento tenta compreender como se comporta esse jovem setor da economia.
Se a onda ainda é tímida por aqui, no mundo há indícios de que ela ganha força. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) anunciou em junho que vai duplicar os investimentos de impacto (um tipo de empréstimo voltado para as empresas interessadas nas classes mais pobres) a partir de 2012. O banco se comprometeu a destinar US$ 100 milhões anuais para iniciativas privadas que atendam os 360 milhões de pessoas que vivem com menos de US$ 3 mil por ano na América Latina. Segundo um relatório do banco americano JP Morgan, o setor poderá receber investimentos entre US$ 400 bilhões e US$ 1 trilhão na próxima década. "Os investimentos de impacto já fazem parte do mainstream", diz o relatório.
A classificação de uma empresa como negócio social é uma decisão um tanto subjetiva. Não existe no Brasil uma figura jurídica para atestar essa condição, tampouco um certificado internacional. Em 2009, um grupo de investidores em negócios sociais criou um padrão para medir e relatar o impacto desses empreendimentos (o Impact Reporting and Investment Standards – Iris).
Mas alguns críticos questionam até que ponto esses indicadores são suficientes para rotular uma corporação. Um exemplo emblemático da falta de consenso são as Casas Bahia, a maior varejista de eletrodomésticos e móveis do Brasil. A rede vende para as classes C, D e E e, apesar dos altos juros, promove melhoria de qualidade de vida em massa ao dar acesso a bens antes inalcançáveis. A trajetória da companhia é parecida com a da maioria dos negócios sociais. Seu criador, Samuel Klein, começou pequeno. Com sua charrete, vendia de porta em porta roupas de cama, mesa e banho na periferia de São Paulo. Por que, então, as Casas Bahia não podem ser consideradas um negócio social? "O corte principal é a intencionalidade", afirma Graziella Comini, da USP. "Desde o início, precisa ficar claro qual é o retorno social daquela empresa. E aonde ela quer chegar com o empreendimento."
Prahalad acabou criticado por se preocupar mais com os dividendos das companhias do que com suas intenções altruístas. Agora, pouco mais de um ano depois de sua morte, um movimento silencioso envolvendo a mesma base da pirâmide propalada por ele começa a ganhar vulto no mundo. Desta vez, porém, os protagonistas da nova onda dizem ter um propósito ainda mais nobre: o de promover impacto social claro e tangível, na tentativa de reduzir a miséria. "Os pequenos empreendedores são mais ágeis e abertos às inovações do que as grandes corporações", afirma Graziella Comini, professora da Universidade de São Paulo (USP) e representante brasileira do Social Enterprise Knowledge Network (Sekn), uma rede de colaboração acadêmica da qual faz parte, entre outros, a Harvard Business School. "Eles têm todas as condições para provocar tais transformações."
Um mapeamento obtido com exclusividade por ÉPOCA dá uma dimensão do tamanho desse universo no Brasil. A pesquisa – desenvolvida pelo braço brasileiro da Aspen Network of Development Entrepreneurs (Ande), um conjunto global de organizações que apoiam pequenas empresas em crescimento em 150 países – elencou pela primeira vez quais são os empreendimentos envolvidos na ambiciosa meta de melhorar a qualidade de vida das classes C, D e E (além de gerar lucro, claro) – os negócios sociais (leia as histórias nas páginas a seguir). O levantamento mostra que já existem nos trópicos fundos de capital de risco dispostos a investir nos negócios com retorno social. E aponta as iniciativas que atuam como molas propulsoras dos empreendedores. Acompanhe o cenário.
O Brasil tem 50 negócios com ambição de promover impactos sociais, 40 organizações dedicadas a desenvolver esses empreendimentos e 14 investidores, entre fundos de capital e doadores, voltados para esse público.Apesar de pequenos, os negócios sociais têm uma abrangência geográfica significativa: 72% atuam fora de seu Estado de origem, e 22% também operam em outros países.O foco dos empreendedores está nas classes D e E, com salários de até cinco salários mínimos. As empresas tradicionais, em sua maioria, estão interessadas na classe C, de maior poder aquisitivo.Os empreendedores dos negócios sociais são experientes. Grande parte já teve uma empresa antes. Oito de cada dez têm curso superior ou pós-graduação.Mais da metade (58%) das organizações que ajudam no desenvolvimento dos negócios não cobra pelo serviço.Os investidores sempre levam em conta o impacto social dos negócios, medido por meio de metodologias internacionais, antes de escolher onde colocar dinheiro.
Mas o que são, afinal, negócios sociais? O mesmo capitalismo capaz de elevar a produção de riquezas no mundo a um patamar jamais imaginado tem se mostrado incapaz de reduzir significativamente a desigualdade entre ricos e pobres. É nesse contexto que emergem os negócios sociais, uma espécie de entidade híbrida entre uma empresa tradicional e uma organização não governamental (ONG).
O conceito de negócio social é relativamente novo. Seu primeiro esboço surgiu no fim do século XX da insatisfação de alguns pensadores que contestavam o sistema econômico em curso. O economista bengali Muhammad Yunus é o dono da abordagem mais radical. Ele criou o modelo das "empresas sociais" (social business, em inglês), novas companhias que têm como prioridade a geração de benefícios sociais, e não lucros e dividendos. Em suas corporações, os acionistas recuperam só o capital investido. Todo resultado gerado é usado para ampliar o alcance ou para melhorar a qualidade do produto ou serviço. O banco de microcrédito fundado por ele, o Grameen Bank, já emprestou cerca de US$ 8 bilhões a mais de 8 milhões de pessoas em Bangladesh.
Embora Yunus tenha alcançado reconhecimento internacional (ele e seu Grameen Bank receberam o Prêmio Nobel da Paz em 2006), seu modelo está longe de ser unanimidade. A noção de que o lucro precisa estar dissociado do impacto social desagrada à maioria. Primeiro, pela dificuldade de reproduzir essas experiências em diferentes realidades. Segundo, porque são raros os casos de empreendimentos que ganham escala. Por isso mesmo, o conceito vem evoluindo. Há centenas de casos de negócios no mundo operando com impacto social e retorno financeiro. Um exemplo de sucesso é o SKS Microfinance, o maior banco de microcrédito da Índia. Em 2010, o SKS abriu capital na Bolsa de Valores, com a mesma tarefa de empresas tradicionais: dar resultados e satisfação aos acionistas.
A pesquisa realizada pela Ande Polo Brasil adotou uma visão menos utópica que a de Yunus. "Negócios sociais são mecanismos financeiros que oferecem produtos ou serviços, de qualidade e a preços acessíveis, para a baixa renda", afirma Rob Parkinson, coordenador da Ande. "Ou negócios que incluam a população da base da pirâmide na cadeia de valor." O levantamento considerou apenas pequenas e microempresas (com receita anual de até R$ 16 milhões). Outro critério foi sua sustentabilidade financeira: só entraram os negócios estruturados para ser economicamente viáveis. O mapeamento, uma parceria com a Fundação Avina e a Potencia Ventures, instituição criada para oferecer capital financeiro e intelectual aos negócios voltados para a redução da pobreza, levou seis meses para ser concluído. Sua execução ficou a cargo da empresa de pesquisa Plano CDE.
Não falta público para esse novo tipo de empreendimento. Segundo estimativas do governo, o Brasil tem hoje 16 milhões de habitantes (ou 8,5% de sua população) em situação de extrema pobreza. No mundo todo, segundo o Banco Mundial, mais de 2,5 bilhões sobrevivem com menos de US$ 2 por dia. "Temos problemas gravíssimos que os governos, as ONGs e as empresas tradicionais não conseguem resolver", afirma Vivianne Naigeborin, assessora estratégica da Potencia Ventures. "Com o levantamento, queremos estimular os negócios a olhar para o público C, D e E." O mapeamento tenta compreender como se comporta esse jovem setor da economia.
Se a onda ainda é tímida por aqui, no mundo há indícios de que ela ganha força. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) anunciou em junho que vai duplicar os investimentos de impacto (um tipo de empréstimo voltado para as empresas interessadas nas classes mais pobres) a partir de 2012. O banco se comprometeu a destinar US$ 100 milhões anuais para iniciativas privadas que atendam os 360 milhões de pessoas que vivem com menos de US$ 3 mil por ano na América Latina. Segundo um relatório do banco americano JP Morgan, o setor poderá receber investimentos entre US$ 400 bilhões e US$ 1 trilhão na próxima década. "Os investimentos de impacto já fazem parte do mainstream", diz o relatório.
A classificação de uma empresa como negócio social é uma decisão um tanto subjetiva. Não existe no Brasil uma figura jurídica para atestar essa condição, tampouco um certificado internacional. Em 2009, um grupo de investidores em negócios sociais criou um padrão para medir e relatar o impacto desses empreendimentos (o Impact Reporting and Investment Standards – Iris).
Mas alguns críticos questionam até que ponto esses indicadores são suficientes para rotular uma corporação. Um exemplo emblemático da falta de consenso são as Casas Bahia, a maior varejista de eletrodomésticos e móveis do Brasil. A rede vende para as classes C, D e E e, apesar dos altos juros, promove melhoria de qualidade de vida em massa ao dar acesso a bens antes inalcançáveis. A trajetória da companhia é parecida com a da maioria dos negócios sociais. Seu criador, Samuel Klein, começou pequeno. Com sua charrete, vendia de porta em porta roupas de cama, mesa e banho na periferia de São Paulo. Por que, então, as Casas Bahia não podem ser consideradas um negócio social? "O corte principal é a intencionalidade", afirma Graziella Comini, da USP. "Desde o início, precisa ficar claro qual é o retorno social daquela empresa. E aonde ela quer chegar com o empreendimento."
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