Gabriela Carelli
Entre a vida e a morte
O chefe do setor de bioética do governo americano diz que nenhum sistema público do mundo consegue atender em igualdade de condições todas as pessoas necessitadas
O médico Ezekiel Emanuel, 54 anos, é diretor de bioética dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH). Com dois diplomas de Harvard (medicina e filosofia política), universidade da qual foi também professor, foi assessor de dois presidentes (Bill Climon e Barack Obama) e escreveu nove livros sobre os dilemas morais da medicina. Fora do ambiente acadêmico, contudo, tornou-se mais conhecido pelo apelido maldoso de “Dr. Morte”, cunhado por uma colunista de jornal que o acusava de estar, no fundo, pregando a negação de tratamento pelo sistema de saúde pública a velhos e doentes terminais. Filho de um imigrante israelense, ele é irmão de Rahm Emanuel, prefeito de Chicago e ex-chefe de gabinete de Obama. Em São Paulo, onde esteve na semana passada para uma conferência médica, Ezekiel Emanuel concedeu entrevista à VEJA.
VEJA: O senhor tentou realmente instituir no serviço de saúde americano uma comissão para decidir sobre a eutanásia de pacientes idosos e pobres?
Ezekiel: Durante meu mandato como conselheiro do presidente Barack Obama, escrevi um artigo para a revista científica The Lancer que discorria sobre quais pacientes deveriam ser privilegiados pelo sistema de saúde em situações de falta aguda de recursos. Referia-me a situações extremas, como a vacinação em casos de pandemia, quando faltam vacinas para todos e é preciso decidir quem será ou não imunizado. Nessas condições, a recomendação do governo dos EUA e de outros países é que se favoreçam os mais jovens. O mesmo acontece quando você tem apenas um fígado para transplante, mas três pacientes precisam do órgão com urgência, outro caso mencionado no meu texto. Quem será o beneficiado? Uma criança de 2 anos, um jovem de 20 ou um idoso de 70? Qualquer pesquisa de opinião, em qualquer lugar do planeta, vai mostrar que 70% da população, seja americana, seja brasileira, decidirá pelo jovem de 20 anos. É eticamente defensável. Nesse caso, a maioria do público concorda comigo. A filosofia também. Não estou nem um pouco constrangido por ter escrito isso. Na medicina, muitas vezes é preciso fazer escolhas difíceis. Isso acontece com muito mais frequência do que as pessoas imaginam ou querem crer.
O senhor está dizendo que o sistema de saúde escolhe quem vai viver, quem vai morrer?
Isso ocorre nos países mais pobres, sem infraestrutura. Nos Estados Unidos, esse tipo de situação não existe no dia a dia da medicina, Só temes racionamento em situações-limite. Não há como negar que, em relação ao transplante de fígado, há, sim, um problema a ser resolvido. No passado, a preocupação era o número limitado de máquinas de diálise. Chegou a ser formado um “Comitê de Deus”, composto de médicos que decidiam quem seria tratado. Isso não existe mais. No restante da saúde americana, não há racionamento. Hoje, o gasto do sistema de saúde por pessoa nos Estados Unidos, em relação ao PIB per capita, é um dos maiores do mundo. É uma vantagem e tanto. Não temos de decidir para onde vão as verbas. Talvez os médicos brasileiros tenham de tomar decisões difíceis com mais frequência, infelizmente. Quando os hospitais públicos não dispõem de vagas suficientes nas UTIs para atender a população, é preciso decidir quem ocupará o leito da forma mais ética e moral possível.
Como é possível decidir que uma vida humana tem mais valor que outra?
Existe, sim, um princípio ético de igualdade segundo o qual todas as vidas humanas têm o mesmo valor e merecem o mesmo tratamento. Concordo com isso. O problema é que não há somente um princípio ético. Existe uma lista enorme de outros princípios. Para ser ético quando se trata da saúde da população de um país, é preciso salvar o maior número de vidas possível. não pensar em salvar uma vida apenas. Outro princípio estipula que é preciso salvar pacientes com mais anos de vida pela frente. As pessoas são muito simplistas ao tratar de um assunto tão complexo.
A tecnologia permite manter vivos miihares de pessoas com pouquíssimas chances de recuperação. O sonhar é a favor da eutanásia nesses casos?
Sou oncologista. Durante meus anos de prática médica, tive de vivenciar, centenas de vezes, situações em que não existe tratamento capaz de diminuir um tumor e em que o paciente vai morrer inevitavelmente. Nesses casos, acho que é dever do médico conversar com a família e decidir o que é melhor para garantir ao paciente um fim digno, sem sofrimento, como tornar menos dolorosas as últimas semanas ou meses. Só uma pessoa totalmente insensível negaria a um paciente o direito de morrer quando a vida se toma pior do que a morte. Apesar de pensar assim, sou totalmente contra a legalização da eutanásia, o que é bem diferente. Isso abriria precedentes para a ocorrência de milhares de mortes desnecessárias.
Por que o senhor é contra a legalização da eutanásia?
Por três razões principais. Primeira, porque, num mundo cada vez mais cheio de velhos, pessoas mal-intencionadas podem se apropriar de uma legislação que permite a eutanásia para matar quem ainda quer e tem o direito de continuar vivo. Segunda, porque para muitos médicos, é mais fácil aplicar uma injeção em um paciente à beira da morte do que tratá-lo. E emocionalmente exaustivo, um verdadeiro fardo para os médicos e outros profissionais de saúde, acompanhar diariamente um paciente assim e presenciar o sofrimento de seus familiares. Terceira, porque a eutanásia não é um assunto relevante para a maioria da população. Basta olhar a experiência holandesa. Na Holanda, onde a eutanásia é legalizada, só 3% das pessoas morrem dessa forma. Os outros 97% dos pacientes não estão interessados nisso. E preciso gastar energia para criar uma legislação que beneficie a vida dos 97% que querem continuar respirando, não o contrário.
O senhor é contra a eutanásia mesmo quando se trata de pôr término a uma existência em estado vegetativo ou a dores insuportáveis, que droga nenhuma é capaz de eliminar?
É um equívoco achar que a maior parte das pessoas que pedem para morrer está sofrendo imensa dor. A maioria delas está deprimida ou perdeu as esperanças. Para essas pessoas, melhor do que dar uma injeção mortal é tratá-las com ajuda psiquiátrica, terapia, antidepressivos e medicamentos adequados.
O que fazer com os pacientes em coma irreversível?
Muitos médicos, em diversos países, já optam por interromper o tratamento em casos de pacientes em estado vegetativo. Um médico responsável pode decidir se é hora de desligar os tubos ou parar com a medicação. Isso não é o mesmo que dar uma injeção letal em uma pessoa à beira da morte. Não é eutanásia. É uma medida ética, que garante um fim digno. Os Estados tinidos são o país que mais gasta em saúde. Apesar disso, a sistema de saúde público americano é considerado inferior em comparação ao de muitos países industrializados.
Os Estados Unidos são o país que mais gasta em saúde. Apesar disso, o sistema de saúde pública americano é considerado inferior em comparação ao de muitos países industrializados. O que há de errado?
Quando os países enriquecem, eles passam a gastar mais com saúde. Na década de 30 os Estados Unidos gastavam 3% do PIB em saúde e as pessoas viviam até os 60 anos. Atualmente, o país despende cinco vezes mais, algo em torno de 2 trilhões de dólares por ano. Isso garante assistência a 200 milhões de americanos, cuja expectativa de vida beira os 80 anos. A projeção é que os gastos com saúde dupliquem ou tripliquem em três décadas. Não vejo problema nenhum em gastar dinheiro com saúde pública. O problema é gastar e distribuir essa montanha de dólares de forma eficiente. É preciso adaptar o sistema americano e outros sistemas de saúde a uma nova realidade. A população mundial está envelhecendo. Isso implica mais doenças crônicas, mais tratamentos, mais internações e, obviamente, maiores gastos.
Como um sistema de saúde pode lidar com o envelhecimento da população?
Sou otimista em relação ao futuro da saúde tanto nos Estados Unidos quanto em outros países, como o Brasil, mesmo com o aumento da longevidade. O envelhecimento da população por si só tem pouco impacto sobre o custo do sistema. Nos Estados Unidos, as mudanças demográficas respondem por apenas 2% no aumento total dos gastos com saúde. O que realmente pesa no custo do sistema de saúde americano é a necessidade de acompanhar os avanços tecnológicos. Novas técnicas, equipamentos e remédios encarecem em 40% a 60% o custo dos tratamentos. No decorrer da próxima década, porém, a tecnologia médica tende a ficar menos onerosa, da mesma forma que ocorreu com os televisores e, mais recentemente, com os telefones celulares. Até que isso se reflita no custo dos tratamentos é vital investir em prevenção. Por isso as campanhas contra o fumo, a obesidade e a favor de uma vida mais saudável são imprescindíveis neste período de transição. A médio e longo prazo, as tecnologias vão ajudar a reduzir o custo da saúde, aumentando o grau de segurança dos hospitais, diminuindo a incidência de erros médicos e prevenindo mais eficientemente as doenças crônicas.
O que um governo deve oferecer à população em termos de assistência médica?
Nenhum sistema público de saúde consegue solucionar todos os problemas e atender todas as pessoas. O Estado tem o dever de fornecer a assistência básica de forma eficiente. Ou seja, prover hospitalização em casos graves, estabelecer programas de prevenção, dar vacinas. Mas quem não quer dividir o quarto de um hospital com outra pessoa tem de pagar por esse luxo; Quem quer se tratar com medicina alternativa também tem de enfiar a mão no bolso. Para mim, isso é eticamente aceitável. O problema é que as pessoas olham o tratamento que os ricos conseguem ter e acham que o governo tem a obrigação de fornecer a mesma qualidade e diversidade. Nunca foi e nunca será assim. Os ricos sempre vão ter mais do que os pobres porque eles podem pagar. Não podemos definir o que é ético e moralmente aceitável em um sistema de saúde com base no tratamento que os ricos conseguem obter. Para saber se um governo cumpre sua obrigação moral em relação à saúde, deve-se perguntar o que é garantido pelo governo aos pobres. Se os pobres têm direito ao básico, de forma eficaz, então o sistema cumpre seu papel.
A Constituição brasileira estabelece que a saúde é um direito do cidadão e um dever do estado. O senhor considera esses enunciados realistas?
Os economistas dizem que tudo o que é gratuito acaba provocando abusos. E uma regra econômica básica. Quando se estipula que a saúde é um dever do Estado, qualquer cidadão pode pleitear na Justiça tratamentos caros e dispendiosos que não são cobertos automaticamente pelo sistema público. Quem vai aos tribunais tem muita chance de ganhar. Que juiz não se comove diante do sofrimento de um doente? O problema é que isso não é ético, não é justo com as outras pessoas que dependem do mesmo sistema. Como determinar que parte dos recursos destinados à compra de medicamentos, por exemplo, pode ser redirecionada para tratamentos caros autorizados pela Justiça? É uma questão muito delicada. Não sei o que os governantes brasileiros estavam pensando quando inseriram isso na Constituição.
Qual é seu maior desafio atual no cargo que ocupa?
Durante os oito anos do presidente George W. Bush, o governo americano cortou as verbas para pesquisas com células-tronco embrionárias. Conseguimos reverter essa situação em 2009, o que foi uma grande vitória para todos os americanos. Além dessa questão, que já foi resolvida, acredito que um dos desafios é tornar mais eficiente a prevenção da malária e da aids em países da África e da Ásia com os 10 bilhões de dólares destinados anualmente para esses fins. Há quem pense que os americanos são muito conservadores e que, todos os dias, tenho de lidar com manifestantes contra o aborto ou o uso de células-tronco embrionárias. Isso é um equívoco. Meu maior desafio é gastar bem o dinheiro público para melhorar a vida dos outros.