1 – INTRODUÇÃO
Quotidianamente, no senso comum ou no meio forense, a empresa, parafraseando ASQUINI, é tratada como um fenômeno poliédrico, isto é, como se o vocábulo tivesse diversos significados. Ora é utilizada com o sentido de pessoa (a empresa Ré; a empresa Autora; a empresa demitiu 10 funcionários), ora no sentido de lugar (vou à empresa) e, ainda, como atividade (tenho uma empresa de transportes).
Será que, juridicamente, a empresa tem esse perfil polissêmico? No que interessa: (i) a empresa tem personalidade jurídica? Ou (ii) a empresa é uma pessoa jurídica? São essas as perguntas que este ensaio busca responder.
Inicialmente, será abordada a compreensão de personalidade jurídica. Depois, se analisará a Teoria da Empresa adotada no Código Civil vigente. Então, o sentido jurídico de empresa será enfocado, para, finalmente, elaborar-se uma conclusão.
2 – A PERSONALIDADE JURÍDICA
Existem duas pessoas no Direito brasileiro. A pessoa natural, qualificação jurídica do ser humano, e a pessoa jurídica, etiqueta que o ordenamento atribui a certos entes, com o fim de incrementar as relações jurídicas.
Conforme FIÚZA (2007, p. 123), “as pessoas, naturais ou jurídicas, são os sujeitos dos direitos subjetivos. É em sua função que existe a ordem jurídica”.
É a personalidade que atribui a qualificação de pessoa aos sujeitos de direito.
NERY JÚNIOR e NERY (2008, p. 199) anotam, de maneira bastante didática, que sujeito de direito: “é a pessoa, ou seja, o ente dotado de personalidade. A personalidade civil (CC 2º), ou simplesmente, personalidade, é a qualidade de quem é pessoa (...)”.
O ser humano é pessoa natural exatamente por sua condição de ser humano. Leciona MAMEDE, contudo, que não se confundem ser humano com pessoa, porquanto aquele é um “conceito biológico, ao passo que o conceito de pessoa, para o Direito, indica o sujeito com capacidade de titularizar direitos e deveres” (MAMEDE, 2004, p. 59).
Em relação às pessoas jurídicas, ensina o mesmo MAMEDE que o Direito cunhou, a partir de previsão legal, “o artifício de se permitir que o traje ou véu da personalidade jurídica fosse atribuído a entes não humanos” (MAMEDE, 2004, p. 61).
A personalidade civil da pessoa natural inicia-se com o nascimento com vida (art. 2º, do CC). A existência legal da pessoa jurídica com a inscrição dos seus atos constitutivos no órgão público respectivo (arts. 45 e 1.150, ambos do CC/02).
O art. 44 do Código Civil traz o rol das pessoas jurídicas de direito privado existentes entre nós.
Encontram-se arroladas, em seus 6 (seis) incisos: (I) associações, (II) sociedades, (III) fundações, (IV) partidos políticos, (V) entidades religiosas e a novel (VI) EIRELI (empresa individual de responsabilidade limitada).
Embora seja certo que aludidas hipóteses sejam meramente exemplificativas (Jornada III STJ 144), não menos certo é que para ser pessoa jurídica é fundamental que o Direito confira, expressamente, tal qualificação (por todos: NERY JÚNIOR e NERY, 2008, p. 199, item 3).
Assim, a personalidade dos entes de existência ideal (cf. TEIXEIRA DE FREITAS) – as pessoas jurídicas – decorre de um reconhecimento do Ordenamento, é dizer, somente será pessoa jurídica a figura expressamente enunciada como tal pelo Direito Positivo.
Vale, de logo, um parêntese. A empresa não está arrolada no art. 44 do CC/02. “A propósito”, observa ROCHA FILHO (2004, p. 55), “o novo Código Civil, a exemplo do anterior, ao definir as pessoas jurídicas de direito privado (art. 44), ali não incluiu as “empresas””.
Enfim, existem duas pessoas, dois sujeitos de direito: (i) a pessoa natural e (ii) a pessoa jurídica. E mais. Somente será pessoa jurídica o ente ao qual o Direito expressamente outorgar tal qualificação.
3 – A TEORIA DA EMPRESA
Para apresentar a Teoria da Empresa é necessário, precedentemente, discorrer, em brevíssimas linhas, sobre a evolução histórica do Direito Comercial/Empresarial, o qual, segundo a corrente majoritária, passou por três fases evolutivas.
A primeira fase, designada de subjetivista, tinha como pano de fundo a figura do comerciante. A segunda, objetivista, fundeava-se nos atos de comércio. A terceira e atual, taxada de subjetivista moderna, baseia-se na empresa. Veja-se amiúde.
O Direito Privado, de orientação romanística, somente contemplava o Direito Civil. Os comerciantes, por necessidade, criaram um direito próprio, à margem do comum, para regular a atividade que exploravam – o comércio – e que florescia naquele período histórico (a Idade Média). Surge o Direito Comercial (é a primeira fase).
Com a Revolução Francesa, substitui-se o critério subjetivo, do comerciante, por um critério objetivo, os atos de comércio. É dizer, todos que praticassem atos de comércio (um rol de atividades econômicas) teriam acesso aos benefícios do Direito Comercial. Trata-se da segunda fase.
RUBENS REQUIÃO (2008, p. 12), em clássica passagem, considerava que “o sistema objetivista, que desloca a base do direito comercial da figura tradicional do comerciante para os atos de comércio, tem sido acoimado de infeliz, de vez que até hoje não conseguirem os comercialistas definir satisfatoriamente o que sejam eles”.
O vigente Código Civil inaugura, de lege lata, a terceira e atual fase do Direito (agora) Empresarial. A dicotomia civil/comercial, baseada na Teoria dos Atos de Comércio, restou superada pela noção de empresa e empresário. Agora civil/empresarial.
A Teoria da Empresa, de inspiração italiana, adotada pelo Código Reale, marca a nova quadra do Direito Privado. Mas do que se trata essa teoria? Resumidamente, (i) elevou a empresa ao ponto central da disciplina; (ii) passa a adotar um conceito único de empresa; e (iii) é o novo marco divisório do Direito Privado.
REQUIÃO (2008, p. 15) assevera que “os autores modernos acolhem o novo conceito como básico do direito comercial”. E completa (idem, ibidem): “o direito comercial [deve ser tratado] como ordenamento destinado a estabelecer a disciplina jurídico-privada das empresas”.
Assim também COELHO (2013, p. 34), para quem “o núcleo conceitual do direito comercial deixa de ser o “ato de comércio”, e passa a ser a “empresa””.
“Nosso Direito Comercial”, acentua ROCHA FILHO (2004, pp. 15/16), procurador aposentado da JUCEMG, “se afastou, assim, da teoria dos atos de comércio, criada pelos franceses, e abraçou a teoria da empresa, criada pelos italianos”.
TAVARES BORBA (2004, p. 13), ao discorrer sobre a dicotomia do direito societário, que se aplica às inteiras a este estudo, diz que: “a teoria da empresa passa então a informar a nova distinção, que se baseia na existência ou não de uma estrutura empresarial [empresa], para assim classificar as sociedades em sociedades empresárias e sociedades simples”.
E, conforme BERTOLDI (2013, p. 32), “não resta dúvida de que nosso direito passa a adotar definitivamente a teoria da empresa”.
Com efeito, a partir do Código Civil, a empresa é erigida ao centro da disciplina. Se há empresa, aplica-se o Direito Empresarial. Caso não esteja presente, aplica-se o Direito Civil.
“Com isso”, adverte o professor ROCHA FILHO (2004, p. 15), “mudou-se o foco do Direito Comercial: o que interessa, agora, é a empresa (atividade econômica organizada), exercida, profissionalmente, por um empresário ou por uma sociedade empresária (para a produção ou a circulação de bens ou de serviços) e não mais a prática de atos de comércio”.
Vale relembrar que no regime anterior essa distinção se dava a partir dos atos de comércio. Se a pessoa praticasse alguma das atividades elencadas nos atos de comércio, faria jus ao Direito Comercial. Caso contrário, Direito Civil.
No regime atual e a partir desse novo eixo gravitacional, será a presença ou não da empresa que determinará a incidência do Direito especial (Empresarial) ou do Direito comum (Civil).
Enfim, a Teoria da Empresa marca a nova e moderna face do Direito Empresarial, o arcabouço legal da empresa e do empresário.
4 – A EMPRESA
No final do Século XIX, os estudiosos voltaram suas atenções para esse fenômeno crescente. A indagação logo os assaltou: o que é a empresa? Qual o seu sentido jurídico?
Destacaram-se os estudos de ALBERTO ASQUINI, intitulado “Os Perfis da Empresa”. A partir de uma análise da legislação italiana, o autor concluiu que, para o Direito, a empresa não tinha um significado, mas quatro (os quatro perfis da empresa!). Interessantíssimo notar que as acepções encontradas coincidiam – coincidem! – com o sentido vulgar do vocábulo. É dizer, (1) empresa como pessoa ou empresário (perfil subjetivo); (2) empresa como objeto ou estabelecimento (perfil objetivo); (3) empresa como atividade (perfil funcional); e (4) empresa como uma corporação (perfil corporativo) (cf. GONÇALVES NETO, 2008, p. 49).
O magistral CESARE VIVANTE rebateu a conclusão de ASQUINI, asseverando que empresa não pode se confundir com o empresário, nem com o estabelecimento e, muito menos, com uma corporação (união do empregador com os empregados).
Logo, soçobraram três dos sentidos (ou perfis) encontrados por ASQUINI, a partir da crítica de VIVANTE, restando como o sentido de empresa, para o Direito, a atividade. De tal affair surgiu o conceito jurídico de empresa, que corresponde ao seu perfil funcional. Assim, a empresa é a atividade explorada pelo empresário.
Segundo ROCHA FILHO (2004, p. 57), “começaram os comercialistas a pesquisar o conceito de empresa”, concluindo que “empresa significava “repetição de atos praticados a título profissional”. “Por outras palavras, significava “atividade””.
Essa a compreensão que grassou no Direito italiano e, por manifesta inspiração, no Direito brasileiro (cf. BERTOLDI, 2013, pp. 31 e 54).
Como no Codice Civile de 1942 (Itália), o Código Civil de 2002 não traz o conceito de empresa, o qual é extraído da definição de empresário prevista no art. 966, segundo o qual: “considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”.
Elucida GONÇALVES NETO (2008, P. 68) que:
Não houve preocupação de enunciar um conceito de empresa. No entanto, em diversas passagens dos dispositivos que o compõem, há referência ao vocábulo, nelas destacando-se sempre o significado funcional, registrado por ASQUINI, o que, aliás, pode ser também extraído do próprio conceito legal de empresário contido no art. 966, qual seja, o de atividade organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços.
COELHO (2013, p. 35) é peremptório:
Empresa é a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços. Sendo uma atividade, a empresa não tem a natureza jurídica de sujeito de direito nem de coisa. Em outros termos, não se confunde com o empresário (sujeito) nem com o estabelecimento empresarial (coisa).
Essa atividade, conforme se extrai da norma do art. 966, do CC/02, pode ser de (i) indústria, (ii) comércio ou (iii) prestação de serviços.
BERTOLDI (2013, p. 54), didaticamente, afirma que “empresa é a atividade desenvolvida pelo empresário”. E exemplifica, a partir de uma indústria de automóveis (idem, pp. 54/55): “o empresário, nesse caso, será a sociedade que tenha por objeto social a fabricação de automóveis e a empresa desenvolvida por este empresário (a atividade) é a construção de automóveis”.
De fato, como o comércio era a atividade do comerciante, a empresa é a atividade (econômica organizada) do empresário.
Nessa margem, a lição de VERÇOSA (2004, p. 139), para quem o “empresário é o titular da empresa, ou seja, aquela pessoa natural ou jurídica a quem ela é imputável. Isto quer dizer, que é empresário quem efetivamente exerce a empresa, fazendo-a atuar no mundo jurídico, nele assumindo direitos e obrigações”.
Da legislação recente, extraem-se três dispositivos, dentre outros, que apontam essa mesma direção: art. 1.142 do CC/02; e arts. 1º e 47 da Lei 11.101/05 (de Lei de Recuperação e Falências). Do primeiro, ao definir estabelecimento, marca-se que se trata do conjunto de bens que o empresário (sujeito) reúne para explorar a sua empresa (atividade). Do segundo (art. 1º da LRF), quem são os beneficiários do diploma, ou seja, o empresário e a sociedade empresária (deve-se incluir, evidentemente, a EIRELI); logo, nada de empresa como pessoa. O último evidencia que a recuperação busca a “preservação da empresa”, como a atividade econômica organizada geradora de riquezas.
É importante destacar, por fim, que a empresa (atividade econômica organizada) pode ser explorada por três sujeitos distintos, por três pessoas diversas, sendo uma natural e duas jurídicas, que são os titulares de direitos e obrigações:
- o empresário individual: pessoa natural, previsto no art. 966;
- a sociedade empresária: pessoa jurídica, estatuída no art. 982; ou
- a EIRELI: nova pessoa jurídica, contemplada no art. 980-A.
Esses os figurinos legais possíveis (por todos: GOMES, 2013, pp. 37/38) para quem desejar desempenhar essa importante atividade, geradora de riquezas (tributos, empregos e as utilidades).
Em suma, não restam dúvidas de que o Direito brasileiro, filiando-se ao italiano, adota o conceito jurídico único de empresa. Para a Ciência Jurídica, empresa é a atividade exercida por esse importante ator econômico, o empresário, sob qualquer das formas acima.
De tal arte, absolutamente lícito concluir que a empresa não tem natureza de pessoa jurídica e, conseguintemente, não tem personalidade jurídica. Logo, não tem CNPJ, tampouco é jurídico dizer-se, como corriqueiro no meio forense, a “Empresa-Ré” ou a “Empresa-Autora”.
5 – CONCLUSÃO
Não se desconhece o uso atécnico do vocábulo “empresa” por todos os lados. Mesmo no ambiente forense, os protagonistas do direito utilizam-no sem rigor científico.
A personalidade jurídica é um atributo legal. As pessoas jurídicas de direito privado estão elencadas no art. 44 do Código Civil, em rol apenas exemplificativo, é verdade. No entanto, conforme demonstrado, essa etiqueta – de pessoa jurídica – depende de expressa previsão legal.
Empresa, para o Direito, é a atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. É que o que se depreende do art. 966, do CC/02.
Empresa não tem personalidade jurídica, não é uma pessoa jurídica. Não se lhe outorgou tal característica. Nesse sentido, o monótono magistério doutrinário suso anotado.
São sujeitos dessa atividade: (i) empresário individual (pessoa natural; art. 966); (ii) sociedade empresária (pessoa jurídica, conforme art. 44, II, CC; e art. 982, CC); e, finalmente, a EIRELI (pessoa jurídica, conforme o art. 44, VI, CC; e art. 980-A, CC). Assim, a empresa pode ser explora por uma pessoa física (empresário) ou por pessoas jurídicas (sociedade empresária ou EIRELI).
Portanto, empresa é a ATIVIDADE explorada pelo empresário, seja individual, sociedade ou EIRELI. Não tem CNPJ, não contrata e não pode ser parte em processo!
Bibliografia
BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 7ª Ed., São Paulo: RT, 2013
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial – direito de empresa. V. 1. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013
FIÚZA, César. Direito civil – curso completo. 10ª Ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2007
GOMES, Fábio Bellote. Manual de direito empresarial. 4ª ed., São Paulo: RT, 2013
GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Direito de empresa, 2ª ed., São Paulo: RT, 2008
MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro, vol.2, São Paulo: Atlas, 2004
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 6ª Ed., São Paulo: RT, 2008
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. Vol. 1, 27ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2008
ROCHA FILHO, José Maria. Curso de direito comercial – parte geral. 3ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2004
TAVARES BORBA, José Edwaldo. Direito societário. 9ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004
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