GACC - Grupo de Assistência à Criança com Câncer

GACC - Grupo de Assistência à Criança com Câncer
Desde o início de suas atividades, em 1996, o GACC - então Grupo de Apoio à Criança com Câncer - existe para aumentar a expectativa de vida e garantir a oferta e a qualidade global do tratamento oferecido integral e indistintamente a crianças e jovens com câncer, diagnosticados com idades entre 0 e 19 anos incompletos, independente de sexo, cor, religião ou posição socioeconômica.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Culpa cabe na religião e na mente, mas não no Direito de Família


Giselle Câmara Groeninga é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

Algumas notícias recentes tais como a votação do Estatuto da Família[1], que exclui a realidade da diversidade das organizações familiares, as discussões quanto ao aborto e pílula do dia seguinte, inclusive nos casos de estupro, em muitos aspectos representam um retrocesso quanto à laicidade do Estado e do Direito.
A dinâmica pendular, de avanços e de retrocessos, e de tensão entre os poderes, e mesmo ideologias, é um movimento inerente às mudanças legislativas que devem acompanhar a sociedade. No entanto, às ideologias devemos atentar.
Após um Outubro Rosa, que iluminou questões ligadas às mulheres, em muito transcendendo o nosso contexto a cena mundial foi invadida pelas mais do que alarmantes notícias dos ataques terroristas em Paris, na última sexta feira 13 de novembro.
Polarizados dois lados. De um, o amálgama de religião e Direito; de outro, direitos fundamentais e conquistas quanto à liberdade, inclusive de credo e de pluralidade quanto às várias formas de constituição das famílias, aí incluída a diversidade quanto às manifestações da sexualidade, e conquistas quanto à laicização do Estado e do Direito. 
Aponto que algumas diferenças marcam também os contrastantes avanços havidos pelo nosso Direito de Família, avanços dos quais devemos cuidar. O choque dos ataques alerta para a importância, e mesmo urgência, da discussão dos temas que, em nossas terras, têm sido defendidos muitas vezes de forma passional.
A exclusividade de valores religiosos do matrimônio indissolúvel e sacralizado, e entre homens e mulheres, com fins de procriação, passou, há já algum tempo, a contemplar diferenças e diversidades. A família, atualmente, se define como eudemonista, em que cada um busca sua realização e bem estar, pautadas as relações pela igualdade e pelo respeito às diferenças, e pelos valores da ética do cuidado e da solidariedade.
A mudança que vejo como definidora das diferenças é a da laicização do Direito e, do ponto de vista que aqui enfatizo, é a mudança de paradigma daquele baseado na culpa para aquele baseado na responsabilidade.[2]
Há muito a culpa tem sido usada e abusada pelo Estado e pelo Direito de Família, e ideologias religiosas para o controle das relações.
Não abordo aqui, absolutamente, a culpa estritamente do ponto de vista religioso, mas aponto que não mais cabe a utilização acrítica de tal instrumento pelo nosso Direito de Família. E, neste sentido é que alerto para o cuidado quanto aos retrocessos.
A culpa é uma poderosa forma de dominação utilizada para o quê, hoje, por vezes detectamos como indevido exercício do poder afetivo por parte de instituições. Poder amalgamado com aspectos da ideologia religiosa, patriarcal, e outras. Inclusive servindo-se, por vezes, também de racionalizações subtraídas da psicologia. Uma forma de dominação da mente e dos comportamentos.
A culpa é um sentimento que, por ter a peculiaridade de ser também inconsciente, diversamente de todos os outros sentimentos, se priorizado e se não evoluir para a responsabilidade, traz várias consequências. Pode nos vitimizar quando ao outro a atribuímos indiscriminadamente; pode nos martirizar quando a nós a atribuímos de forma inconsciente. Mas, sobretudo, nos infatiliza, pelo caráter impessoal que ela tem, e leva a radicalizações.
A culpa pode, também, servir de álibi quanto à enfrentar e assumir pessoalmente as responsabilidades. Uma equação que se traduz como: culpado por tudo responsável por muito pouco.
O Direito de Família era pautado pela atribuição de culpas, prenhe de interpretações não só com alta dose de subjetividade e ideologias, como, em consequência, parciais. Atualmente, temos mais consciência de impensáveis violações ao direito à intimidade e dos ataques à dignidade, cometidos sob o manto da investigação da culpa, dividindo as relações em culpado, algozes, e vítimas, inocentes.
Preciso dizer que a culpa, no mais das vezes, recaía (e ainda recai) sobretudo sobre mulheres, na tentativa de exercer controle sobre a sexualidade e, também, sobre a maternidade e mesmo o patrimônio, transformando-as em vítimas do sistema. Necessário, ainda, dizer o quanto a homossexualidade é alvo da tentativa da imputação da culpa. 
Não perquirir culpas denota um amadurecimento bem vindo da laicização do Direito, e mais livre do controle de ideologias e propósitos outros que fogem à sua finalidade. Mas, certo é que outros capítulos, no sentido não mais das culpas e sim das responsabilidades, deverão ser escritos nas evoluções da legislação.
Em tempos de uma bem vinda consideração e integração dos afetos no Direito de Família, em que evoluímos de modelos que pretendiam ignorá-los, cabe relembrar que somos seres particularmente vulneráveis aos afetos e sentimentos deles derivados. Disso ninguém duvida.
Mas, o somos inadvertidamente, sobretudo, vulneráveis ao sentimento de culpa que, diversamente dos outros sentimentos, tem a peculiaridade de ser também inconsciente. E, ao se tratar do inconsciente, como disse Freud, não somos lá muito donos de nossa mente.
Se a culpa não deve mais ter o lugar que tinha no Direito de Família, cabe dizer que em termos psíquicos, ela é um sentimento com o qual estamos sempre às voltas, no incessante trabalho mental de diferenciar entre a culpa e a responsabilidade.
Assim, por ser um sentimento também inconsciente, lhe somos particularmente vulneráveis, do que decorre o imenso poder de controle dos comportamentos e das relações.
Ninguém desconhece nos relacionamentos, sobretudo os familiares, o poder e o custoso trabalho de discriminação que o sentimento de culpa demanda no processo de individuação e do assumir responsabilidades.
A culpa é um sentimento inerente ao ser humano e muito do trabalho mental e de amadurecimento se dá no sentido da transformação de uma posição de vítima passiva das circunstâncias e dos outros em agentes e narradores da própria vida. Por exemplo, é natural durante a infância e adolescência, atribuir-se a culpa e responsabilidades aos pais, para se chegar à equação da responsabilidade que aqueles cabe e coube, para aquela que efetivamente agora cabe ao sujeito, inclusive quanto às suas escolhas.
Longo o caminho de amadurecimento de sujeito assujeitado a sujeito agente, com a devido equilíbrio na atribuição das responsabilidades — a si e ao outro.
Longo o percurso da cidadania, e de valores democráticos e republicanos, de sujeito assujeitado, vítima passiva de instituições e de ideologias que lhe ferem direitos fundamentais, para sujeito que assuma responsabilidades, e que, devidamente, as possa assim, também, cobrá-las.

[1] Nome que leva à confusão com o Estatuto das Famílias proposto pelo IBDFAM e apresentado pela Senadora Lídice da Mata.
[2] GROENINGA, GISELLE CÂMARA. A (In)Operabilidade do Conceito de Culpa no Direito de Família – uma perspectiva interdisciplinar. Dissertação de mestrado em Direito Civil defendida na Universidade de São Paulo, 2008.

Estado laico é conquista de todos e das famílias


Paulo Lôbo é advogado, doutor em Direito Civil pela USP, professor emérito da UFAL e diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Foi conselheiro do CNJ.

Durante quase 400 anos, desde o início da colonização portuguesa até o advento da República, o Estado e a Igreja Católica integravam a ordem política brasileira. A Constituição imperial de 1824, apesar de sua inspiração iluminista e liberal, estabeleceu em seu artigo 5º: “A religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”. Assim, à Igreja Católica se assegurou o domínio do espaço político, e às demais, o espaço privado.
A interferência da religião na vida privada foi marcante na formação do homem brasileiro, repercutindo na dificuldade até hoje sentida da definição do que é privado e do que é público, da confusão entre “o jardim e a praça” — a feliz metáfora de Nelson Saldanha —, do sentimento generalizado de que a coisa pública e as funções públicas seriam extensão do espaço familiar ou patrimônio expandido de grupos familiares. Esse traço resistente da nossa cultura tem origem no desenvolvimento da sociedade portuguesa, transplantado para o Brasil colonial. Para Nestor Duarte[1], o “privatismo característico da sociedade portuguesa” encontrou, no meio colonial brasileiro, condições excepcionais para o fortalecimento da organização familiar, “que se constitui a única ordem perfeita e íntegra que essa sociedade conheceu”. A casa grande era uma “organização social extraestatal, que ignora o Estado, que dele prescinde e contra ele lutará”. A igreja era a única ordem que conseguia preencher o vazio entre a família e o Estado no território da colônia.
A igreja regulava a vida privada das pessoas desde o nascimento à morte, conferindo a seus atos caráter oficial. Os atos e registros de nascimento, casamento e óbito eram da competência do sacerdote. Os cemitérios estavam sob controle da igreja.
Apenas com o advento da República, em 15 de novembro de 1889, o ideário da modernidade de separação do Estado e da igreja se consumou (Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 1890). A Constituição de 1891 estabelecerá que (artigo 72, parágrafo 7º) “nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o governo da União ou dos estados”. A partir daí, confirmando-se nas Constituições subsequentes (como o artigo 19, I, da CF-88), a religião saiu juridicamente da vida política, destinando-se à vida privada.
O Estado laico é conquista de todos e das famílias, porque fundado na ética da tolerância. Não é hostil às religiões; ao contrário, surgiu no processo emancipador da humanidade, para assegurar a liberdade religiosa. Acolhe e garante os crentes e os não crentes. Nesse sentido, é o Estado neutro.
Apesar do advento mais que centenário do Estado laico, houve e ainda há tentativas de imposições de valores religiosos no ordenamento jurídico das relações familiares. A igualdade entre os cônjuges, o reconhecimento jurídico das entidades familiares fora do casamento, o direito ao divórcio, a igualdade jurídica entre filhos de qualquer origem foram e são alvo dessa interferência indevida, em desafio aberto ao Estado laico. Foi difícil a luta para redução do quantum despótico nas famílias, ao longo do século XX; cada passo era resultado de árdua batalha legislativa, como se viu na progressiva emancipação dos filhos “ilegítimos”.
No âmbito privado, as pessoas podem dirigir suas vidas familiares de acordo com os valores da religião a que se vincula, desde que não conflitem com os princípios constitucionais. Podem, por exemplo, não se divorciar, se assim determina sua religião. Podem não concordar que haja outras entidades familiares fora do casamento.
Não podem, todavia, impor suas convicções religiosas ao conjunto da sociedade, ainda que aquelas sejam majoritárias, porque o Estado laico também protege outras convicções religiosas ou não religiosas minoritárias e a liberdade de cada pessoa de realizar seus projetos de vida.
É preocupante que alguns parlamentares assumam seus mandatos como representantes do povo e se convertam em porta-vozes de seus grupos religiosos, como se não vivessem em um Estado laico. O projeto de lei denominado Estatuto da Família, que tramita na Câmara dos Deputados, ao proclamar que família é apenas a constituída pelo casamento, é exemplo negativo da tentativa de reintrodução de valores religiosos unilaterais na ordem jurídica das relações familiares, violando o Estado laico e a garantia constitucional da liberdade de constituição de família e do pluralismo familiar. Expressa intolerância e aberto desafio ao que já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.

Fundamental direito de amar e ser amado deve valer de qualquer maneira


Giselle Câmara Groeninga é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

A família posa no porta retrato das redes sociais compartilhando a desejada felicidade que reflete muito do que se quer ser, ter e mostrar. Da família arrumadinha pelo autoritarismo, presa na moldura dos desbotados retratos em branco e preto (e para quem conhece, nos negativos todos pareciam caveiras...), agora é a vez das lentes das expressões dos sentimentos — o que dá sentido e colore as relações.
Expressões que despertam nos voyeurs, por vezes, a idealização e mesmo a sensação de exclusão e até de inveja. Dinâmica própria das redes sociais, também, mas felizmente não só, permeadas pelas relações de consumo.
E, de um modo ou de outro, as famílias que nas redes exibimos também disseminam o sagrado ideal da família. Mas, sem mais, com o aval do direito, sacralizar algumas famílias e excomungar outras para resguardar tal ideal. E, progressivamente o ideal abriga o plural e o real.
Tal evolução não se deu sem o sacrifício das famílias que passaram, e passam, pelo calvário das demandas judiciais, e que com o sofrimento em carne viva acabam por criar jurisprudência e modificar a legislação. Uma luta pelo direito em verem reconhecidos seus direitos individuais e, em última instância, o direito mais fundamental — o de amar e ser amado.
E nesta demanda dos direitos a ter este direito, do direito a ter e ser em família, três eixos se entrecruzam. Um diz respeito à conjugalidade, nos divórcios, mas também quanto às uniões, inclusive dos direitos a transcender o sexo e o gênero.
Outro diz respeito a amar o que transcende à própria vida — as relações materno e paterno filiais. E, ainda outro, diz respeito ao direito a ter mãe e pai, e à parentalidade — o direito a ter um casal de pais que cumpra a responsabilidade que, por definição, é compartilhada. Eixos do direito a ter e ser em família o que inclui, em segundo plano, também o horizonte dos avós na inserção genealógica que forja as famílias.
Eixos todos pautados pela igualdade e pelo reconhecimento dos estados — mãe, pai, filho, avós, e das diferenças. Diferenças que também se pautam pelas formas de expressão dos afetos. 
A imagem do fogo sagrado a ser mantido nos lares, desde os romanos, hoje metaforicamente tem o sentido de manter o amor a despeito de todos os outros sentimentos que também integram a vida familiar. E o direito de que tratamos é o de amar e ser amado.
E quase que num ato falho conceitual, falamos hoje no direito ao afeto, confundindo-o com o amor. Mas, não devemos esquecer que no dito direito ao afeto está incluído o direito não só ao amor, e suas diversas formas (feminino, masculino, o que transcende o gênero, o de mãe, o de pai, o de filho, o de avós) e ao seu inverso — a indiferença —, e o direito a se separar, mas todos os outros sentimentos, não só de amor, que pautam o cotidiano da expressão dos afetos na família.
Por incluir a vivência real e cotidiana da família , esclarecedor é pensar que o direito ao afeto abriga, na verdade, sentimentos não tão nobres como o amor e a solidariedade, e outros não tão sagrados como a agressividade, as raivas e mesmo ódios.
E o direito ao relacionamento familiar e convivência trata do direito a vivenciar, na segurança do amor que deve prevalecer nos sagrados laços familiares, também esta outra gama de sentimentos.
É esta a segurança que nos traz a família: o direito a ser sujeito e a assujeitar-se às nuances de sentimentos que traduzem também conflitos, desavenças, diferenças, mantendo a continuidade do amor. E tudo isto a despeito de mudanças na configuração do casal que dá origem à família, garantindo o lugar e o exercício da função de cada qual — mãe, pai, filhos.
As famílias que vivemos no cotidiano das demandas judiciais são diferentes das exibidas nas redes sociais, bem o sabem aqueles que acompanham as tristes cores dos sentimentos de mães, pais e crianças em verem reconhecidos lugares, funções e direitos.
E a função do direito em dar a cada um o que é seu demanda agora que se considere o direito ao afeto. Afinal, é desta matéria prima que se formam e têm continuidade as famílias.
O ano de 2015 foi um ano pautado por discussões que, de forma geral, envolvem o afeto e sua expressão em sentimentos. Não são questões novas, mas as lentes agora são outras, sensíveis à outras cores.
Este foi um ano de diversidades em que a multiparentalidade, uniões poliafetivas, e mesmo a monogamia foram colocadas em discussão. São, é verdade, exceções e talvez excessos em apaixonadas discussões que balançam o que acreditávamos serem alicerces de nossa cultura. E estes são questionamentos que estão por vir. Do meu ponto de vista, são discussões que tendem, como tantas já havidas, a fortalecer ainda mais a família e, sim, em suas formas plurais.
E, num balanço deste ano, acredito que foi a guarda compartilhada que ocupou de forma consistente, mas não uniforme, o centro das discussões.
Fruto de desdobramentos do declínio da autoridade, e autoritarismo, exercida com exclusividade pelo pai de família, dos desdobramentos do movimento feminista e, também, da revolução trazida pelo direito ao afeto reivindicada pelos pais, a dinâmica do exercício do poder familiar tem, felizmente, se modificado.
Antes de mais nada, a importância da função paterna está não só na imposição de limites, inclusive quanto ao poder afetivo muitas vezes indevidamente exercido pelas mães, sobretudo quando pretensamente suficiente para a criação dos filhos, com a alienação das funções, mas também, e sobretudo, nas possibilidades de expressão dos afetos, dos sentimentos que contemplem o poder afetivo paterno.
Verdade que a guarda compartilhada representa um antídoto quanto à alienação parental, tanto dos pais como das próprias mães, mas, sobretudo, ela representa um antídoto contra o abandono afetivo na medida em que reconhece a importância do poder afetivo exercido pelos pais.

DANOS MORAIS Mãe entra com ação contra pai, mas é condenada por alienação parental

A mãe que impede o pai de ver a filha injustificadamente pratica alienação parental e, por isso, deve indenizar o pai da criança. Com esse entendimento, o juiz da 2ª Vara Cível de Taguatinga (DF) condenou a mãe de menor e autora de processo a indenizar o suposto réu (pai da criança) pelos danos morais causados a este.
A autora ingressou com ação judicial alegando que o pai da menor, com quem manteve convivência sob o mesmo teto por dois meses, não comparece nos dias designados para visitação da filha, procurando-a em datas distintas ou tentando buscá-la em locais não combinados previamente. Afirmou ainda que ele vem reiteradamente acionando órgãos administrativos (delegacias de polícia e Conselho Tutelar) e judiciários com o intuito de criar transtornos à sua vida pessoal, informando falsamente o descumprimento, por parte dela, de ordem judicial. Sustenta, com isso, que teria sofrido danos morais indenizáveis.
Contudo, segundo o juiz, não é isso o que se extrai dos autos, visto que as provas colacionadas mostram, entre outros, que a autora não entregou a filha ao genitor em datas marcadas, por diversas vezes, alterou o endereço de casa sem nada informar ao pai da criança e ainda deixou de comparecer em juízo às audiências nas quais se discutia a visitação da criança.
Para o juiz, diante desse cenário de recusa da autora em entregar a filha ao pai, a despeito da existência de decisão judicial, não lhe restou "outra alternativa que não a de buscar os instrumentos legais na tentativa de exercer direito que lhe era garantido. Por isso, procurou a delegacia de polícia, o Poder Judiciário e o Conselho Tutelar". Assim, concluiu: "A improcedência do pedido é medida que se impõe".
Diante da acusação que afirmava ser infundada, o genitor manejou pedido contraposto, ou seja, pediu para que a autora é que fosse condenada a pagar-lhe a indenização originalmente pleiteada.
Na análise dos autos, o magistrado anota que, segundo o artigo 22 do ECA, é dever dos pais, entre outros, cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais, sendo o seu descumprimento injustificado, inclusive, causa de suspensão ou perda do poder familiar. Cita também a Lei 12.318/2010, que dispõe sobre alienação parental e cujo artigo 3º traz o seguinte teor: “[A] prática de ato de alienação parental fere direito fundamental da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, prejudica a realização de afeto nas relações com genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral contra a criança ou o adolescente e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de tutela ou guarda”.
Tomando como base as provas que constam nos autos, o juiz registra que "o que se vê é um pai em busca quase que desesperada de se aproximar da filha, enquanto a mãe, por razões injustificáveis, em nada contribuiu com a plena realização do direito da filha de conviver com seu genitor. Muito pelo contrário, o que sugerem os autos é que a fragilização dos laços afetivos entre pai e filha pode ter sido potencializada pela conduta da mãe".
Logo, constatada a conduta ilícita da autora, o dano moral causado ao genitor é evidente, "tendo em vista que se trata de incursão em seara sentimental de elevada grandeza, que é aquela na qual se hospeda a afetividade existente entre pai e filha", conclui o magistrado ao julgar improcedente o pedido formulado pela autora e procedente o pedido contraposto do acusado, para condenar a genitora ao pagamento de indenização no valor de R$ 1,5 mil, a título de danos morais.
Na fixação do valor da condenação, além de se observarem os critérios comuns referentes à sua força dissuasiva e impossibilidade de enriquecimento sem causa, o julgador também considerou que eventual desfalque no patrimônio da genitora iria refletir, em última análise, na própria filha, motivo pelo qual foi arbitrado em patamares módicos, tendo em vista, ainda, que a situação financeira de ambas as partes não evidencia grande manifestação de riqueza. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-DF.

ATENÇÃO MORADORES DE CARAGUATATUBA NESTA MATERIA - SÓ INDENIZAÇÃO MATERIAL Danos a veículo em rua esburacada não geram compensação moral

Por não ter comprovado que os danos causados a seu veículo ao passar por uma rua esburacada também lhe proporcionaram sofrimento intenso, um motorista do Distrito Federal não receberá compensação moral. No entanto, a 3ª Turma Recursal do Tribunal de Justiça local confirmou, por unanimidade, sentença do 1º Juizado da Fazenda Pública que condenou o Distrito Federal, a Novacap e o DER a indenizarem os danos materiais causados ao carro.
O autor narra que, no dia 28 de outubro de 2014, seu veículo sofreu vários danos em via pública mantida pelos réus devido a um enorme buraco e que foram gastos R$ 917 com o conserto. Requereu, assim, que os réus fossem condenados a pagá-lo o montante despendido com o conserto do carro, bem como indenização por danos morais.
Nesses casos, o juiz explica que "o Estado tem o dever de indenizar o dano causado ao particular decorrente da falha no serviço, cabendo ao prejudicado comprovar a culpa. Ocorre culpa quando o serviço não funciona, funciona mal ou funciona a destempo".
Afirma ainda que, "na responsabilidade civil subjetiva do Estado por conduta omissiva, há necessidade de comprovação do nexo causal entre o dano sofrido pelo particular e a falta na prestação do serviço”. “Ocorre que as fotos trazidas aos autos pela parte autora denotam a inadequada manutenção de uma via, considerando que a pista apresentava grande buraco, o qual, segundo consta, deu causa aos danos, relativamente aos quais pleiteia reparação. Não havia no local qualquer sinalização que alertasse os condutores de veículos sobre o risco que eles sofriam."
"Configura-se, assim, a omissão na prestação de serviço por parte dos réus, notadamente porque as fotografias em questão registram o ocorrido e mostram claramente o local do sinistro. Além disso, a nota fiscal acostada à inicial constitui fator de confirmação da existência de danos no veículo do autor. O conjunto probatório descrito também é apto a comprovar a conduta omissiva culposa dos réus", conclui o julgador.
Danos morais
Quanto ao pedido de danos morais, no entanto, o julgador anota: "Verifica-se que não há provas contundentes nos autos que justifiquem a fixação de indenização por danos morais, eis que o autor não comprovou que, em face dos danos sofridos por seu veículo, ele tenha experimentado sofrimento intenso e que ultrapasse os aborrecimentos que fazem parte da vida moderna. Diante da ausência de prejuízo na esfera dos direitos da personalidade, inviável se mostra tal indenização".

Diante disso, o magistrado julgou parcialmente procedente o pedido do autor para condenar os réus a pagarem-lhe a quantia de R$ 917, a título de indenização por danos materiais, devidamente corrigida. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-DF.
Processo 0705781-54.2014.8.07.0016

Sociedade brasileira: violência e autoritarismo por todos os lados

marilena
A filósofa Marilena Chaui prefere apostar na possibilidade de mudanças, sobretudo quando observa acontecimentos como o da ocupação das escolas públicas em 2015
Desde o início dos anos 1980, Marilena Chaui tem proposto como chave de leitura de nosso país a ideia de que a sociedade brasileira é autoritária e violenta. Em obras como Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas, de 1981 (que será reeditado em seusEscritos, publicados pela Editora Autêntica), a filósofa contraria a imagem de uma cultura nacional pretensamente formada pelo acolhimento recíproco e pela cordialidade, revelando estruturas enraizadas de hierarquização e de sedução pela autoridade.

Não se trata, porém, de considerar os brasileiros como individualmente violentos. Trata-se de esclarecer as estruturas históricas que produzem uma vida social em que o espaço público e republicano é minguado, transferindo-se ao Estado o papel de sujeito da cidadania e reproduzindo-se, no cotidiano, relações de poder.
Essa chave de leitura permanece, aos olhos de Marilena Chaui, extremamente atual para analisar o momento vivido pelo Brasil. Apesar dos percalços éticos, políticos e econômicos das duas últimas décadas, o país tenta entrar na Modernidade, que exige necessariamente inclusão social. Essa mesma inclusão, no entanto, desperta resistência. Se os auxílios financeiros para inserção econômica, distribuídos por países como Alemanha e França às populações mais pobres, são considerados por lá sinais de desenvolvimento, o Bolsa Família, no Brasil, é chamado de assistencialismo e de estratégia eleitoreira. Se a ação do Estado no controle do mercado é vista como necessária em outras partes do mundo, aqui ela é chamada de “ameaça comunista” e de inchaço da máquina pública.
O problema é que ainda não sabemos muito bem o que é o espaço público, porque não agimos como sujeitos, transferindo a responsabilidade pela construção da cidadania aos aparelhos de governo. Focamo-nos nas salvações que podem vir do poder e não obrigamos o poder público a representar de fato todos os setores sociais. O resultado dessa prática (ou ausência de prática) é o fortalecimento da violência e do autoritarismo, que atualmente se intensificam nas formas de controle policial, por exemplo, e a falta de pensamento no jogo político (não somente de direita, mas também de esquerda!).
Chamar atenção para essa dinâmica perversa é o que faz Marilena Chaui na entrevista que concedeu à CULT.

CULT: Como a senhora vê a situação política vivida pelo Brasil hoje?
Marilena Chaui: É uma situação gravíssima. É gravíssima não por causa daquilo que a mídia apresenta como falência do governo, mas pelo movimento conservador, reacionário, de extrema direita e protofascista que está tomando conta da pauta política. Quando examinamos os pontos da pauta política discutidos de outubro de 2015 até agora, vemos o poder dos grupos dos “3B”: o boi, a bala e a Bíblia. É uma regressão sociopolítica fora do comum. É uma pauta regressiva, antidemocrática, de violação de todos os direitos que foram conquistados ao longo dos últimos quinze anos. Todo o fundo reacionário protofascista que existe no Brasil e que é alimentado pela classe média urbana brasileira veio à tona e pegou as esquerdas completamente desprevenidas. As esquerdas tinham pautas como o antineoliberalismo, os direitos, a questão da Palestina e do Oriente Médio, do surgimento do Estado Islâmico, enfim, pautas voltadas aos problemas da democracia e do socialismo, e foi pega completamente despreparada por uma onda de extrema direita que repôs para o Brasil os tópicos que estiveram em vigência no início dos anos 1960. É uma ameaça de golpe para reverter o processo de consolidação dos direitos sociais obtidos nos últimos anos e sustentada pela pauta “boi, bala e Bíblia”. Aliás, a atuação de grupos religiosos é muito preocupante e vai além de uma questão propriamente política, porque, apesar de se manifestar na representação política, ela é uma questão socioeconômica: é a maneira como as igrejas evangélicas interiorizaram e reformularam a concepção neoliberal.

Bolsa Família é democratização do poder, diz Nobel da Paz


O ativista indiano Kailash Satyarthi é reconhecido mundialmente como um dos principais porta-vozes da luta contra o trabalho infantil. Por uma de suas missões, que libertou 80 mil crianças em situação de escravidão na Índia, ele recebeu, em 2014, o Prêmio Nobel da Paz, ao lado da paquistanesa Malala Yousafzai.
Em visita ao Brasil, Satyarthi participou de reuniões com ministros e autoridades. O indiano se declarou parceiro do País e fã das políticas públicas brasileiras de inclusão social e combate à pobreza. "O Bolsa Família não é simplesmente um programa de desenvolvimento, é a democratização do poder e o empoderamento da população pobre. Mais importante que isso, ele cria esperança na parcela mais pobre da sociedade", disse, em entrevista exclusiva ao Portal Brasil.
Nesta semana, Satyarthi teve um encontro com a presidenta Dilma Rousseff para discutir novas ações contra o trabalho infantil e sugeriu que o Brasil encabece uma conferência entre os países do BRICS para debater a sustentabilidade na pauta da infância.

NTERESSE PRÓPRIO - Devedor é responsável por dar baixa de protesto de título em cartório

A responsabilidade de retirar o próprio nome do protesto de título é do devedor. A decisão é do 3º Juizado Especial da Fazenda Pública do Distrito Federal, que julgou improcedente a ação movida por uma cliente contra o Banco de Brasília (BRB), por não ter solicitado ao cartório o fim do protesto depois que ela pagou sua dívida.
Na ação, a consumidora pediu indenização por danos morais do BRB, por não ter efetuado a baixa do protesto de títulos que já teriam sido pagos por ela. O banco contestou o pedido alegando que o protesto foi legítimo, pois foi empreendido ante a ausência de pagamento do título pelo devedor. E argumentou que cabe ao devedor, de posse da carta de quitação da dívida, providenciar a retirada do protesto.
O juiz Enilton Alves Fernandes julgou o pedido improcedente. A conclusão foi a de que o banco não praticou qualquer ato ilícito. “Ora, se o título foi protestado, restando mantido o apontamento mesmo após o pagamento, já restou pacificado o entendimento de que cabe ao devedor providenciar a baixa de protesto”, afirmou. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-DF. 
Processo 0700152-65.2015.8.07.0016

O céu é o limite para as possibilidades de violações que um drone oferece



 é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Drone: olhai por nós e nos mostre
Recebo um arquivo de vídeo de um ex-estagiário. A filmagem era: a minha casa, da janela, pelo lado de fora. Eu sentado no sofá, lendo um livro. A cena, em si, significava que eu tinha sido filmado, sem perceber, no quarto andar do meu apartamento, em invasão absurda da privacidade. E acontece, todos os dias, inclusive com gente tomando banho ou praticando atos mais fogosos, de janela aberta ou nem tanto. Logo teremos a cortina antidrone, nas melhores casas do ramo.

Havia falado a esse estagiário que eu estava pesquisando, junto a Francine de Paula (doutoranda na UFMG) e Jorge Andrade (mestrando Univali), os impactos do drone no cotidiano e a necessidade de pensarmos alguma forma de regulamentação. Ele me mostrou que as coordenadas em que pensamos estar a sós precisam ser revistas Olhe a sua direita e procure pela janela... assista ao vídeo, que mostra como acontece (aqui).
Mas afinal o que é um drone?
Drone é um veículo aéreo, naval ou terrestre, não tripulado e controlado à distância, capaz de ser utilizado com múltiplas finalidades, conforme a foto de um exemplar, bem comum, e provido de câmera.

Recomendo a leitura do livro Teoria do Drone, de Gregório Chamayou, embora sua crítica se dirija à nova guerra praticada pelos Estados Unidos: aquela virtual feita por soldados que levam os filhos à escola e depois controlam drones nos centros de operação em território americano e, de longe, matam milhares de pessoas sem sair do joystick; não mais aquela real, dos antigos e valentes soldados, que se preparavam para o combate em que se podia matar ou morrer.
Parecem jogadores de videogame virtual com efeitos letais e reais (veja uma atuação aqui). Com esse mecanismo, a guerra é de baixas calorias em que só um lado morre. Demonstra-se, no livro, a angústia de soldados que não se sentem soldados e o uso da tecnologia para o fim de abater gente. Em nome da guerra ao terror, mata-se por protocolos de GPS e memorandos assinados por qualquer autoridade. E todo cuidado é pouco, porque atualmente isso acontece, basicamente, no Afeganistão. Mas basta mudar a coordenada dos tiros.
Os usos da tecnologia
A neutralidade da tecnologia é um tema atual e no caso, para além dos avanços, os usos que podem ser feitos, muitas vezes não são controlados. No caso da bomba atômica, durante a Segunda Guerra Mundial, tivemos a discussão sobre a responsabilidade ética dos físicos nucleares. Enfim, o tema seria interessante. Mas pretendo seguir um caminho mais cotidiano em relação ao drone.

Pode-se bisbilhotar a vida de alguém com um drone munido de câmera, filmando a intimidade, controlando a vida, enfim, violando a intimidade e a privacidade. Maridos e mulheres ciumentas, detetives particulares que oferecem o serviço de monitoramento, curiosos que filmam pessoas em casa, tomando banho, dentre outras aplicações. Recentemente se entrega pizza com drone, a Amazon quer fazer delivery dos produtos comprados por drones, presos receberam celulares e droga. Aliás, a substituição de “mulas” (pessoas que carregam drogas) por drones já é uma realidade no México e nos EUA (clique aqui e aqui para ver). A polícia tem usado drones emoperações de investigação e em campo, inclusive para patrulhamento de áreas sensíveis em que drones sobrevoaram. Não se sabe o estatuto da prova para fins penais e as condições de sua produção. Há, enfim, um campo teórico aberto.
Precisamos, então, conversar sobre drones
Assim é que, com a produção sem limites de drones, em breve, assim como fui surpreendido pelo estagiário curioso, que pretendia me mostrar que poderia me vigiar quando quisesse com seu brinquedo, a privacidade resta cada vez mais reduzida, como aponta Gregory S. McNeal e também José Luis Bolzan de Morais e Elias Jacob de Menezes Neto, na lógica do surveillance. Logo teremos drones munidos de armas adaptadas, embora os vendidos no mercado não tenham esse dispositivo.

Pode-se, ao invés de pizza, entregar-se bombas, produtos ilícitos ou microfones. Enfim, há mais drones entre o céu e a terra do que podemos imaginar na nossa vã consciência? Além da curiosa vizinha que cuidava da vida de todos, a tecnologia criou a possibilidade de a privacidade ser invadida pelo espaço aéreo por menos de 500 dólares. E isso precisa ser problematizado, porque, de fato, neste exato momento, alguém pode olhar por nós... Tome cuidado com janelas abertas, porque o grande irmão descrito por George Orwell em 1984 possui mais uma ferramenta: o drone.

Como é possível ensinar processo penal depois da operação "lava jato"?

 é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
Depois do acolhimento da delação premiada e da leniência precisamos repensar como ensinamos Processo Penal. Isto porque falamos em princípios do processo penal, em jurisdição, ação e processo. Podemos continuar, por exemplo, a falar que a ação penal é indisponível? Com a Transação Penal da Lei dos Juizados Especiais Criminais já se criou o “jeitinho” da disponibilidade regrada, embora Geraldo Prado tivesse demonstrado que não cabia na tradição do Direito Continental, da qual, em princípio, somos herdeiros. Depois disso veio a delação premiada e a leniência. Ocupam um lugar tolerado. Entretanto, atualmente, viraram manchete. Daí que não podemos mais fingir que possuímos um processo penal único. Hoje, se quisermos ser professores minimamente sérios, precisamos rever o que ensinamos. Delação não é exceção e, acolhida, muda o sentido do processo brasileiro.
Conforme apontam Allard e Garapon: “O Direito tornou-se num bem intercambiável. Transpõe as fronteiras como se fosse um produto de exportação. Passa de uma esfera nacional para outra, por vezes infiltrando-se sem visto de entrada.”[1] Neste contexto e articulando as repercussões desta constatação no campo do Processo Penal, bem assim da Criminologia, influenciadas ainda discurso da Law and Economics[2], baseado em Posner[3], pretende-se delinear que coexistem, a partir de critérios diferenciados, sistemas processuais inconciliáveis em território nacional.
Não podemos ser mais professores românticos e muito menos cínicos. Delação premiada homologada pelo STF, prisão para delação, na mais lídima aplicação do Dilema do Prisioneiro no Processo Penal[4]leniênciaextintiva de responsabilidade penal e negociação do objeto e pena da ação penal, no mínimo, transformaram os pilares daquilo que ensinamos como “ação penal”.
Coexistem, atualmente, duas frequências de Processo Penal, com incongruências marcantes, incapazes de formar um sistema coeso. São tantos institutos incompatíveis com a nossa antiga maneira de pensar que, atualmente, diante da profusão de fontes e tradições, encontramo-nos com sérias dificuldades de ministrar aos alunos um Direito que possa minimamente ser próximo das novidades. Buscamos propiciar coerência que, todavia, torna-se insustentável dada a perplexidade. Elencaremos, assim, algumas dificuldades:
a) a ação penal é mesmo indisponível depois da delação premiada ou podemos simplesmente dizer que é uma exceção?
b) O juiz pode produzir prova, tendo papel de protagonista, inclusive na negociação do acordo? Existe algum resto de imparcialidade? Quais as funções reais do juiz?
c) A oralidade e o cross-examination foi (mesmo) adotada pelo 212 do CPP diante do deslocamento (matreiro) da questão para ausência de prejuízo?
d) Como compatibilizar a chamada de corréu e a confissão depois da validade da delação premiada? Qual o lugar e estatuto das declarações do delator?
e) As normas de processo penal são mesmo irrenunciáveis ou podemos falar em direitos processuais como privilégios renunciáveis pelo acusado? Em que hipóteses?
f) Como fica a conexão probatória nas cisões arbitrárias entre acusados em face do foro privilegiado? Os acusados que foram cindidos podem se habilitar para formular perguntas aos do foro privilegiado? Podem ser arrolados como informantes os acusados cindidos?
g) qual o regime da interceptação telefônica diante da volatilidade dos prazos, regras e do Ministério Público poder executar o ato? Há garantia dos dados brutos? Quem fiscaliza as possíveis interceptações frias?
h) a prisão é processual ou não é mecanismo para aplicação do dilema do prisioneiro ao Processo Penal brasileiro? Qual o papel da mídia nos vazamentos taticamente fomentados?
i) qual o limite de negociação que o Ministério Público possui nos acordos de delação? Pode negociar a imputação, perdoar crimes, fixar teto de pena por todas as condutas? Pode fixar taxa de êxito na repatriação de recursos e lavar dinheiro sujo? (se o dinheiro repatriado não tinha origem, ao se dar a comissão ao delator, não se estaria lavando dinheiro sujo, via delação?) O Juiz pode não homologar o acordo de delação, a partir de quais critérios? E, caso rejeitada, as informações já prestadas serão desconsideradas? Como?
j) se os indiciados devem ter acesso ao que já está produzido contra eles, na linha da Súmula Vinculante 14 (“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”)? Qual o estatuto de sigilo da delação?
Pode-se adotar duas posturas. A primeira é passar por cima destas questões e simplesmente continuar a ensinar como sempre se ensinou. A segunda é reconhecer que não possuímos mais um Processo Penal, mas várias versões simultâneas de Processo Penal e que a compreensão a ser utilizada dependerá dos personagens envolvidos, como já defendemos no livro da Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal.   
O momento é de perplexidade acadêmica já que o modo de aplicar e ensinar o Processo Penal herdado da tradição continental se foi. Aos poucos, sem que tenhamos nos apercebido, ainda que alguns tenham escrito sobre o tema (Geraldo Prado, Rubens Casara, Elmir Dulcrec, Rômulo Moreira, Gustavo Badaro, Fauzi Hassan Choukr, Diogo Malan, João Gualberto Garcez, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Aury Lopes Jr, Nereu Giacomolli, Lenio Streck, Salah Khaled, Flaviane Barros, dentre outros), continuamos fingindo que as coordenadas em que pensamos os institutos do Processo Penal são atuais.
Nesse contexto há uma manifesta tensão entre o Direito Continental e o Direito Anglo-Saxão. Os institutos próprios de cada um dos sistemas acabam sendo intercambiados sem a devida aproximação democrática, isto é, as novidades legislativas são implementadas em tradições filosóficas distintas, daí a perplexidade de muitas das alterações legislativas recentes. Não se trata de reconhecer que a tradição Continental é melhor ou pior, dado que esta discussão é inoperante. O que importa é que as tradições implicam em práticas e modos de pensar diferenciados.
Essa lógica do acontecimento e de diálogo entre tradições precisa ser questionada, já que continuamos a ensinar um Processo Penal que anda em descompasso com os novos institutos. Para os crimes de todos os dias (furto, tráfico, roubo, estupro etc.), de fato, temos o mesmo processo penal da “ação penal indisponível”, da Jurisdição como poder-dever, incapaz, todavia, de se conformar aos novos institutos, especialmente delação e leniência. Podemos, então, aceitar acriticamente a situação? Não deveríamos nos indagar se podemos ensinar parcialmente e não seria nosso dever ético mostrar aos acadêmicos que possuímos versões em frequências diferentes?
O tema nos angustia porque estamos em frequências antagônicas que convivem sem possibilidade de coerência. Fechar os olhos sempre foi a saída mais fácil e arbitrária. Mas chegamos a um ponto de virada, do qual não podemos mais fingir, nem fugir. Ou podemos? Agosto é novo semestre.

[1] ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os juízes na Mundialização: a nova revolução do Direito.  Trad. Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2006, p. 07.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre; AROSO LINHARES, José Manuel. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
[3] POS­NER, Richard A. Economic Analysis of Law. New York: Aspen, 2003; Overcoming Law. Cambridge: Harvard University Press, 1995, Law and Legal Theory in the UK and USA. New York: Oxford University Press, 1996; Law and Literature. Cambridge: Harvard University Press, 1998; The Little Book of Plagiarism. New York: Phatheon, 2007; Problemas de filo­so­fia do direi­to. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. Lisboa: Rei dos Livros, 2015.

O Uber e o pretenso iluminismo do



 é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).
 é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.

Nas últimas semanas, assistimos pela imprensa uma controvérsia que opõe taxistas e a empresa de tecnologia Uber. Pareceres circularam, manifestações foram realizadas e alguns atos violentos (que, obviamente, não podem ser de forma alguma justificados) foram verificados. De tudo o que pudemos apurar, parece-nos que defender a viabilidade e a licitude dos serviços da Uber virou sinônimo de progressismo, espécie de iluminismo do transporte individual de passageiros, enquanto que a posição em favor dos taxistas seria o obscurantismo, um resquício de uma atrasada tradição cartorial.
De nossa parte, nada contra o livre mercado e as consequências que dele decorrem. Todavia, a defesa — quase apaixonada — que dele vem se fazendo, leva a uma perda de objetividade do discurso e este último, ao invés de se revestir dos contornos de uma peça técnica, acaba por se perder em pura retórica. Um dos pontos intrigantes dessa questão diz respeito à lei federal que traça os contornos da política nacional de transportes. É dela que retiramos as coordenadas para responder se os serviços prestados pelo Uber estariam adequados e seriam lícitos perante o direito brasileiro. Nesse caso, há que se observar, a Lei 12.587/2012 não se apresenta como um fóssil jurídico. Ela é recente, de 2012. No que tange especificamente ao quiproquó envolvendo taxistas versus Uber, há um dispositivo (de uma clareza impar), o artigo 12, que afirma ser dever do poder público municipal organizar, disciplinar e fiscalizar os serviços de utilidade pública de transporte individual de passageiros, com base nos requisitos mínimos de segurança, conforto, higiene, qualidade dos serviços e, inclusive, fixação prévia dos valores máximos das tarifas a serem cobradas.
O quadro normativo aponta, portanto, para a competência legislativa municipal, assim como para o exercício do poder de polícia para adequar a prestação do referido serviço aos parâmetros oferecidos pela referida legislação. Há quem diga, no entanto, que a competência legislativa para regulamentação da matéria “transporte” seria privativa do Congresso Nacional, ficando de fora da categoria “matéria de interesse local” que enquadra genericamente as hipóteses de competência legislativa municipal.
A lei, como demonstrado acima, assume a interpretação de que a matéria seria, sim, uma questão de interesse local. E, neste caso, cabe a pergunta: poderia ser diferente? Seria mesmo possível imaginarmos que a regulamentação do serviço de transporte individual de passageiros não estaria imbuído de interesse local? É possível defender-se que, a pretexto de modernizamos nosso modelo de transporte individual de passageiros, ao invés de descentralizar a regulamentação e a gestão devemos optar por um modelo centralizado, baseado em uma competência privativa da união? Se a resposta for positiva, como isso poderia ser feito? De que modo essa regulamentação poderia abarcar interesses e peculiaridades de cidades brasileiras tão heterogêneas entre si como é o caso de Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro (para ficar apenas com estes exemplos)?
Portanto, parece-nos, não há que se falar em inconstitucionalidade formal do artigo 12 da Lei 12.587/2012 por descumprimento das regras de competência legislativa traçadas no artigo 22 da Constituição Federal. Tampouco as respectivas legislações municipais o seriam, na medida em que regulamentam assunto de interesse local e estão amparadas pelo regramento geral da política nacional de transporte posto pela lei de 2012.
Assim, se não há inconstitucionalidade, temos que reconhecer que há aqui uma determinação legislativa que obriga a todos os que, de alguma forma, a ela estão vinculados. Nessa medida, as posições que saúdam o “iluminismo” do aplicativo Uber e homenageiam com isso a livre concorrência e a livre iniciativa, provavelmente terão dificuldades em explicar como uma empresa privada pode assumir uma função que, por lei, é do poder público (organizar os prestadores de serviço e fiscalizar as suas atividades).
Ora, se o Uber pode, cobrando comissão, autorizar e organizar diretamente uma atividade de transporte individual, por qual motivo um particular autônomo não poderia também colocar seu próprio carro à disposição dos clientes, independentemente de qualquer controle por parte do poder público municipal? Qual a diferença entre um particular não vinculado ao Uber transportar um passageiro e um motorista associado ao Uber realizar o mesmo serviço?
Encaminhando-se a resposta no sentido de que a empresa oferece mecanismos de controle da atividade do motorista e do veículo utilizado na prestação do serviço, então teremos que responder a outra pergunta: mas a lei não atribui uma tal competência para a municipalidade? Se o aplicativo Uber controla seus associados, quem, por sua vez, controla a empresa Uber?
A lei confere, claramente, ao município uma tal competência. Mas parece apontar para um controle sobre a permissão de exploração de serviços de táxi (artigo 12-A). No caso da empresa Uber, como o município poderia efetuar essa fiscalização? O Uber seria tratado como se fosse uma cooperativa de táxi do “B”? E mais: o município teria condições de efetuar uma tal fiscalização? Há uma série de problemas que poderiam levar, neste momento, a uma dificuldade de regulamentação do serviço prestado pela empresa.      
Há ainda um exagero quando se defende uma abstenção do Estado no controle da atividade de transporte individual de passageiros. Oportunisticamente, é possível pegar carona na onda de descrédito que desde 2013 acomete, em maior medida, o poder público. Há uma revolta generalizada por conta da má qualidade dos serviços públicos. Mas, ainda assim, nada autoriza uma transferência das competências para o particular. Um pouco de estado sempre é importante. Principalmente quando existe interesse social relevante envolvido. A questão precisa, então, ficar corretamente direcionada: é preciso cobrar mais eficiência do Estado, mas isso não significa demonizá-lo.
Em 2008, mutatis mutandis, a omissão regulatória levou à crise do subprime. Neste caso, chegou-se ao ponto que se chegou, porque havia quem defendesse que o Estado ficasse afastado da regulação financeira para que o capital pudesse, em todo o seu esplendor, frutificar-se e multiplicar-se. Estado demais, em uma democracia de mercado, atrapalha. Mas a ausência dele é tão ruim quanto.
Portanto, neste caso Uber versus taxistas, precisamos, sim, do Estado, para organizar e fiscalizar o serviço de transporte individual de passageiros. Entregar todo o controle da atividade a uma empresa privada gera riscos. Se por um lado, o “monopólio” das companhias de táxi é pernicioso, temos de cuidar para, com a ausência de regulamentação, não transmitirmos simplesmente ao Uber o mesmo monopólio. Estaríamos, neste caso, apenas a trocar uma corporação por outra.
Os serviços de táxi não vão bem? Ok. Mas não vamos atirar fora a água suja com a criança junto...

"Lava jato" é sintoma de que nem as palavras têm mais valor no Direito

O Stephen Georg dizia: que nada seja onde fracassa a palavra. E o poeta português Eugénio de Andrade perguntava: Que fizeste das palavras? Que contas darás das vogais e das consoantes? Já Hilde Domin, por sua vez, lembrava, filosoficamente: “Wort und Ding legen eng aufeinander; die gleiche Körperwärme bei Ding und Wort”.Quer dizer: Palavra e coisa jaziam juntas; tinham a mesma temperatura a coisa e a palavra...! E podemos complementar: Sim, no início era assim. Mas, depois, palavra e coisa se separaram. E, com certa melancolia, podemos acrescentar: E nunca mais se encontraram.
Pois bem. É disso que queremos falar. Qual é a relação entre palavras e coisas? Há palavras sem coisas? As coisas existem sem nome? Se eu sei a palavra, eu sei a coisa? Ou eu posso dar às coisas qualquer nome? Posso sair por aí trocando os conceitos? O Direito estaria imune à relação “palavras-coisas”? Vamos, pois, ao busílis da questão.
Com efeito, noticiou-se que, no dia 30 de julho último, ocorreu o indeferimento do Habeas Corpus de um acusado na operação “lava jato” que está preso há mais de 500 dias, quando o prazo estabelecido, ainda em 2009, pelo Conselho Nacional de Justiça é de 168 dias na Justiça Federal. Na verdade, o prazo da prisão já triplicou àquele previsto no Manual Prático de Rotinas do CNJ. Entre outros fundamentos da decisão, chama a atenção o início do voto do desembargador-relator do Tribunal Regional Federal da 4ª Região: o excesso de prazo estava autorizado porque o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “um pequeno atraso na instrução, justificado pelas circunstâncias, não conduz ao reconhecimento do excesso de prazo. Nesse ponto, vige o princípio da razoabilidade...”.
Ora, qual é o valor das palavras? Elas significam algo? Ou se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa? A questão que se coloca é: a decisão do STJ utilizada como paradigma poderia ser utilizada para sustentar o contrário, ou seja, a concessão do Habeas Corpus. Podemos imaginar a decisão pelo seu lado inverso. Ela seria assim: “o STJ já decidiu que umpequeno atraso na instrução, justificado pelas circunstâncias, não configura excesso de prazo. No caso presente, já tendo passado mais de 500 dias, é evidente que não se pode mais falar em pequeno atraso. Afinal, há uma nítida diferença entre a palavra pequeno e a palavra grande. Embora não tenhamos um tamanhômetro para medir o que significa excesso de prazo, é facilmente perceptível que o triplo do prazo longe está de ser um pequeno atraso. Ordem concedida, portanto”. Simples, assim.
Veja-se a que ponto chegou o Direito brasileiro. Decisões que servem tanto para um lado quanto para o outro. E por que isso é assim? Porque as decisões, mormente as da operação “lava-jato, passaram a ser teleológicas, isto é, finalísticas. O juiz sabe que o acusado tem direito ao Habeas Corpus, para ficar nesse caso específico. Mas ele, pessoalmente, não admite que o acusado possa ser solto. Ou fica pensando acerca do que dirá a mídia. E, consequentemente, arruma um argumento a fim de justificar sua decisão. Esse argumento acaba não tendo importância, porque o que importa é o resultado. Os fins justificam os meios. E, assim, arruínam-se as bases do Direito moderno, calcado na limitação do poder e na garantia dos direitos.
Ocorre que, numa democracia constitucional, todo cidadão tem o direito fundamental de saber o porquê está preso há tanto tempo sem uma sentença definitiva do Estado. A aplicação do Direito pressupõe uma técnica. É ela que, empregada adequadamente, evitará arbitrariedades. Ora, se o acusado está preso cautelarmente, não pode se alegar que sua prisão é porque ele já tem uma condenação. Afinal, ele está preso por cautela ou porque houve condenação? E, ainda: o que diz mesmo o artigo 312 do Código de Processo? Ou os juízes têm poder para elaborar uma nova redação do Código?
Não vai bem a doutrina e tampouco a jurisprudência. Decisões não podem ser políticas ou ideológicas. Devem ser técnicas. Salvemos o que sobra da tecnicidade do direito. Numa palavra: se a Medicina fosse como o Direito, estaríamos lascados, porque o médico poderia considerar que tanto faz dizer ventrículo direito ou ventrículo esquerdo. Ou, mesmo, amputar a perna errada.
Que fizemos com as palavras?
 é doutor em Direito, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da IMED e advogado.
 é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.

Para efetivação da cidadania, defesa de direitos deve ser intransitiva

 é doutor em Direito, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da IMED e advogado.
 é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
O processo inconcluso da cidadania deveria justificar a permanente vigilância de todos atores jurídicos sobre a sua parcela de responsabilidade na efetivação do Estado Constitucional prometido em 5 de outubro de 1988. Aliás, o uso do termo atores do Direito, no que se refere aos mais diversos profissionais que atuam no campo jurídico, foi proposital e visa se contrapor ao rotineiro manejo da expressão “operadores do Direito”.
O saudoso professor Warat sempre criticou essa expressão alegando que o Direito não deve ser “operado” como se fosse uma máquina ou uma engrenagem. Aqueles que atuam na área do Direito (juízes, promotores, defensores, procuradores, delegados, advogados, professores e servidores da Justiça) exercem inúmeras atividades que não devem, de maneira nenhuma, ser comparadas ao simples manejo de uma técnica, uma vez que envolvem as relações humanas e sociais. Da mesma forma, considerando a singularidade dos casos, o agir dos juristas não deve ser considerado como uma mera reprodução, como se a aplicação das normas jurídicas resultasse de um ato mecânico.
Para ele, o uso da expressão “operadores do Direito” é sintomático na medida em que revela o modo como o Direito vem sendo praticado desde o século XIX, com o advento do formalismo jurídico. Em oposição à inspiração positivista que historicamente orientou a educação jurídica no Brasil, Warat sempre defendeu a formação de “atores do Direito”, capazes de protagonizar a transformação da realidade social tão prometida nas democracias constitucionais.
E o que essas considerações se relacionam com o título dessa coluna? O jovem defensor público Eduardo Januário Newton, em sua obra A defesa intransitiva de direitos: ácidos inconformismos de um defensor público, recém lançada pela editora Empório do Direito,  sustenta que somente por meio de uma intransitiva, permanente e contínua defesa dos direitos é que se mostra possível romper com a figura do operador jurídico.
O discurso apresentado pelo autor não constitui uma alusão histérica de exigir direitos imaginários, mas da defesa inflexível da arte de “defensorar”, categoria que é por ele explicada. Assumir o papel de partícipe na transformação do status quo implica em denunciar o transbordamento dos limites do exercício do poder estatal, o que não é uma tarefa tranquila no ambiente totalitário do Poder Judiciário.
A angústia e a acidez trazidas nas palavras de Eduardo se encontram relacionadas com a necessidade de se discutir o que significa “bem comum”, sendo certo que não se trata de um conceito dado, mas que atravessa a realidade de exclusão, dos assistidos que são tolerados por um sistema que mastiga humanos.
No momento atual em que os bodes expiatórios (Rene Girard) são eleitos para o fim de se buscar, compulsivamente, uma suposta harmonia social, nos limites da exclusão, não deixa de ser cínico apontar-se para uma imaginária paz social. Não há paz social com fome, dor, pessoas morrendo de doenças curáveis, enfim, não se pode falar em igualdade em um país em que se morre em filas de hospitais. Contra isso a atuação do defensor é uma esperança e é esse sentimento que a obra tenta transmitir ao seu leitor.
E a esperança se renova em cada atendimento, em cada demanda proposta, na angústia de não poder fazer mais nada. E se insiste. Sempre. A construção da cidadania no Brasil se fez e se faz, em muito, pelo destemor de pessoas que acreditam na realização do Estado Democrático de Direito.
Ora, se esta coluna é denominada Diário de Classe, fica então a nossa sugestão de leitura para a obra citada e que ela possa participar de um diálogo necessário sobre a efetivação da cidadania por meio da incansável, permanente e intransitiva luta pela defesa de direitos.